Da Retórica à Realidade: O Dilema da Educação e dos Projetos Humanitários

 

Peter Sloterdijk, filósofo alemão. 




Como está a qualidade de vida dos idosos no Brasil? Esta questão suscita uma reflexão profunda sobre a posição e o tratamento dispensado aos idosos em nossa sociedade. Parece que, com o passar dos anos, os idosos se tornaram invisíveis, como se sua presença fosse agora translúcida aos olhos da sociedade. Essa invisibilidade não apenas denota uma falta de reconhecimento, mas também sugere uma desvalorização da contribuição e da sabedoria acumulada ao longo dos anos.

A vida do idoso muitas vezes parece envolta em uma transparência tão completa que ele próprio se sente deslocado e marginalizado. Essa percepção pode levar a uma sensação de inutilidade, como se a terceira idade fosse tratada como uma fase de decomposição social, onde as pessoas mais velhas são relegadas ao esquecimento, sem utilidade prática.

É evidente que instituições como casas de repouso para idosos, asilos e similares, muitas vezes funcionam como uma espécie de expurgo social, removendo os idosos do tecido social sob a pretensa trabalho social, onde esconde uma lógica de higienização social. Esse fenômeno guarda semelhanças com o que ocorre com outros grupos marginalizados, como os moradores de rua, que são, de certa forma, excluídos do convívio social. No entanto, é fundamental reconhecer que essa exclusão não pode ser justificada ou aceita sob qualquer pretexto, seja ele de qual ordem semântica for. 

Para mitigar a repulsa social associada à presença de idosos e demais pesoas em situação de ruas, é comum adotar um discurso politicamente correto, enfatizando a oferta de uma suposta qualidade de vida e uma série de benefícios, muitas vezes mais no âmbito nominal do que efetivamente na prática. Esse discurso mascara a realidade, transmitindo a ideia de que os idosos merecem cuidado, afeto, alimentação adequada e abrigo, mas, na prática, esses direitos fundamentais são frequentemente negligenciados ou insuficientemente providos.

Ademais, é alarmante observar que as estruturas construídas para abrigar os idosos frequentemente são abandonadas após um curto período de tempo, deixando essas pessoas desamparadas e desprovidas de assistência. O que vemos, na verdade, é um ciclo vicioso no qual as autoridades municipais, estaduais e governamentais empreendem um processo de "limpeza social", visando ocultar a realidade dos idosos marginalizados para evitar que a sociedade confronte suas próprias falhas e negligências.

É crucial compreender que essa prática de exclusão e abandono não apenas perpetua o sofrimento e o mal-estar dos idosos, mas também evita que tais questões sejam discutidas e abordadas de maneira eficaz. O silenciamento dessas vozes vulneráveis contribui para a manutenção de um status quo injusto e desumano, no qual os mais frágeis são deixados à margem, sem voz e sem recursos para reivindicar seus direitos básicos.

É importante ressaltar que a sociedade não deve encarar a velhice como algo descartável, mas sim como uma fase valiosa da vida, repleta de experiência e conhecimento. A crueldade com a qual os idosos muitas vezes são tratados revela não apenas uma falta de compaixão, mas também uma falta de sensibilidade para com os aspectos mais vulneráveis da condição humana. É fundamental reconhecer que o verdadeiro desenvolvimento de uma sociedade não pode ser medido apenas por seus avanços econômicos e tecnológicos, mas também pela maneira como ela trata seus membros mais frágeis e necessitados. Da mesma forma que podemos julgar uma sociedade pelo modo como trata suas crianças, órfãos e deficientes, também podemos avaliá-la pela forma como trata seus idosos.

Contudo, que estará por detrás desse fenômeno?

Se todas essas análises forem verdadeiras — e por que razão seriam falsas? —, então é pertinente refletir sobre o estado de nossa cidade de Campos-RJ e, por extensão, da sociedade como um todo. A pergunta em si sugere que, se compreendida corretamente, implica uma resposta que ilumina a complexidade subjacente à aparente normalidade e ordem de nossas ruas, fachadas de lojas e prédios.

Por trás da aparente limpeza das ruas, dos sorrisos nas fachadas das lojas e dos edifícios, existe um intricado mecanismo ajustado delicadamente para excluir aqueles que não se enquadram no padrão estabelecido. Teóricos como Marco Casanova atribuem a exclusão a uma lógica aristotélica, que fundamenta a racionalidade no princípio da identidade. Essa lógica, ao priorizar a identidade e desconsiderar as nuances e alternativas da humanidade, inviabiliza a assimilação da diferença e promove uma lógica hierárquica e excludente.

Em outras palavras, o universo afetivo e valorativo que molda nossas ações seria determinado pela nossa capacidade — ou falta dela — de assimilar e incorporar a alteridade. Se essa capacidade é comprometida, surge a violência, seja ela física, mental, social ou moral. A violência, então, estaria intrinsecamente ligada à incapacidade de aceitar o outro, de reconhecer sua humanidade e de valorizar suas diferenças.

Essa análise nos leva a repensar a forma como estruturamos nossa sociedade e como interagimos uns com os outros. Se a exclusão e a violência são produtos de uma lógica excludente e hierárquica, então precisamos buscar formas de promover a inclusão, a diversidade e o respeito mútuo. Isso requer uma mudança fundamental em nossos valores e práticas sociais, uma abertura para a diferença e uma rejeição da rigidez das normas e padrões que perpetuam a exclusão. Apesar disso, tais questões nunca estão em pauta! 

Como podemos explicar o caráter problemático do que foi negativamente destacado?

Em meu entendimento, essa análise é coerente, porém, não abarca outros fatores que contribuem para a complexidade da exclusão social descrita. A exclusão social, como discutida, está intrinsecamente relacionada a questões estéticas, especialmente em uma dimensão sexual da palavra, onde a exclusão parece derivar da tentativa de manter um determinado design ou layout estético.

É possível argumentar que esse problema resulta da imposição de um padrão estabelecido a partir de um horizonte lógico ou racional, que muitas vezes está adormecido. Por trás dessa exclusão, encontramos horizontes sociais, sexuais e econômicos, em grande medida influenciados pelo capitalismo. No entanto, surge a questão: por que esses fenômenos estão tão intimamente ligados? Por que a injustiça e uma lógica injusta podem se disseminar com tanta rapidez?

É evidente que há uma complexa interação de forças em jogo. A recepção e aceitação desses padrões injustos parecem ser bastante difundidas, o que é, no mínimo, preocupante e indicativo de que a tese da humaniade como tendo prazer na crueldade é bastante real. 

Supondo que esse contexto seja completamente verídico e facilmente verificável, bastando apenas ir ao centro da cidade, como por exemplo na Praça Salvador, no calçadão ou na Pelinca. Se tudo isso for verdadeiro e evidente à simples observação, como poderíamos caracterizar essa situação? Seria uma imposição de padrões estéticos e comportamentais? E por que não haveria uma rejeição a essa imposição injusta? Por que as pessoas parecem não se preocupar com a injustiça?

Historicamente, a humanidade buscou explicar a maldade através de interferências metafísicas, espirituais ou mesmo da ignorância. No entanto, com o declínio das instâncias metafísicas, o mal passou a ser interpretado em termos biológicos ou sociológicos. No entanto, explicar a violência, a maldade e a crueldade apenas em termos sociológicos torna-se cada vez mais desafiador.

Primeiro, as ciências sociológicas estão sendo questionadas devido à sua natureza altamente interpretativa. Além disso, o conhecimento e a informação disponíveis não parecem gerar uma mobilidade significativa em direção à melhoria do espírito humano. A hipótese de que a falta de educação formal, disseminação do conhecimento e acesso à informação seriam a causa dos males e da ignorância da sociedade não parece se confirmar. Isso ocorre simplesmente porque as pessoas não buscam esclarecimento; ao contrário, buscam manter e perpetuar o status quo.

Nesse cenário, tenho grandes reservas em relação à defesa da educação e de projetos humanitários, pois parecem mais ser objetos retóricos ou até mesmo bandeiras falsas para uso político, do que iniciativas verdadeiramente bem-intencionadas. Na minha percepção, isso representa um dos instrumentos dos chamados "fins da natureza" ou "fins da cultura" em um nível 2.0.

Em outras palavras, os objetivos egoístas da cultura não podem ser explicitamente revelados como tal, pois a sociedade se fundamenta em um ideal ético e moral de bem comum, ainda que esse ideal não corresponda à realidade efetiva, mas apenas a uma noção nominal. Se esse ideal for desmascarado como falso, toda a estrutura social corre o risco de desmoronar, ou pior ainda, enfrentar um movimento avassalador de destruição das almas. Isso se expressa na promoção da feiura, da sordidez, da amoralidade e de todo tipo de cinismo, resultando na destruição simultânea da sensibilidade estética, ética e moral.

O cinismo, então, atua como um dispositivo linguístico, psicológico e social que busca obscurecer a visão desses fenômenos. Embora as pessoas percebam intuitivamente tais fatos, elas também conseguem ignorá-los, como se não existissem, graças ao cinismo. Esse mecanismo de silenciamento e invisibilidade permite que aspectos deploráveis da humanidade persistam sem serem plenamente confrontados ou contestados.

Em boa medida porque cada indivíduo, independentemente de sua sensibilidade, refinamento estético, ético ou moral, tende a se posicionar como uma criatura de Deus, um pai de família, um cidadão cumpridor de seus deveres, como pagar impostos, entre outros papéis sociais. No entanto, essa autoimagem muitas vezes é apenas uma retórica superficial. Ao adentrarmos na intimidade dessas pessoas, descobrimos pequenas trapaças, mentiras, traições conjugais, desvios de dinheiro público e outras transgressões. Surpreendentemente, mesmo diante desses comportamentos contraditórios, muitas vezes as pessoas parecem não perceber ou simplesmente ignorar esses desvios de conduta.

Essa aparente contradição é o cerne do meu ensaio sobre cinismo e erro, que se destina a elucidar os mecanismos psicossociais por trás da formação dessa falsa consciência esclarecida. A falsa consciência esclarecida refere-se à condição em que um indivíduo tem conhecimento sobre o certo e o errado, o bem e o mal, assim como sobre o funcionamento da realidade, mas continua a agir como se não estivesse consciente desses aspectos.

Essa desconexão entre conhecimento e ação pode ser atribuída a diversos fatores psicológicos e sociais. Primeiramente, muitas pessoas encontram maneiras de racionalizar ou justificar suas transgressões, minimizando sua gravidade ou atribuindo-as a circunstâncias externas. Além disso, a pressão social e as normas culturais podem influenciar fortemente o comportamento das pessoas, levando-as a agir de acordo com as expectativas sociais, mesmo que isso signifique ignorar sua própria consciência.

Outro aspecto relevante é a complexidade do processo de tomada de decisão humano, que muitas vezes envolve conflitos entre desejos imediatos e valores morais de longo prazo. Diante desses conflitos, as pessoas podem ceder a impulsos ou tentações momentâneas, mesmo que isso vá contra seus princípios éticos. Além disso, a falta de consequências tangíveis para as transgressões também pode contribuir para a perpetuação desse ciclo de comportamento contraditório. Se uma pessoa não enfrenta punições significativas por suas ações desonestas, é mais provável que ela continue a agir da mesma maneira no futuro.

Assim, finalmente, procuro oferecer uma análise profunda sobre a qualidade de vida dos idosos no Brasil, destacando sua invisibilidade social e a falta de reconhecimento de sua contribuição para a sociedade. Instituições como casas de repouso e asilos são discutidas como formas de exclusão social, removendo os idosos do convívio social sob a justificativa de higienização social. A reflexão se estende para a aparente desconexão entre o discurso político sobre os direitos dos idosos e a realidade negligenciada em relação aos cuidados oferecidos. Estruturas construídas para abrigar os idosos muitas vezes são abandonadas, perpetuando um ciclo de exclusão e abandono que silencia as vozes vulneráveis e contribui para a manutenção de um status quo injusto. Nesse sentido, destaca-se a importância de reconhecer a velhice como uma fase valiosa da vida e critica a falta de sensibilidade da sociedade para com os aspectos mais vulneráveis da condição humana. A exclusão social é relacionada a questões estéticas, sociais e econômicas, influenciadas pelo capitalismo, levando à reflexão sobre a violência intrínseca à incapacidade de aceitar o outro e valorizar suas diferenças. Além disso, problematizamos a eficácia da educação e dos projetos humanitários, sugerindo que muitas vezes são utilizados como instrumentos retóricos ou bandeiras políticas, em vez de iniciativas genuinamente bem-intencionadas. A falsa consciência esclarecida é abordada como um fenômeno complexo, resultante da desconexão entre conhecimento e ação, influenciada por fatores psicológicos, sociais e culturais. Portanto, se destaca a necessidade de um entendimento mais profundo dos mecanismos subjacentes à exclusão e à falsa consciência esclarecida, bem como um compromisso coletivo com a promoção da honestidade, integridade e responsabilidade individual. Em última análise, o texto convida à reflexão sobre a forma como estruturamos nossa sociedade e como podemos promover a inclusão, a diversidade e o respeito mútuo, rejeitando a rigidez das normas e padrões que perpetuam a exclusão e a injustiça social.

Thiago Carvalho

21 de março de 2024

Campos-RJ

COMPLEMENTO:

Vladimir Safatle // Cinismo e falência da crítica




Referência bibliográfica:

Casanova, Marco. A Persistência da Burrice. São Paulo: Edições Loyola, 2018.

Morin, Edgar. Para Sair do Século XX. Tradução de Francisco Alves. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

Nietzsche, Friedrich. Aurora. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

---. Humano, Demasiado Humano. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Sloterdijk, Peter. Crítica da Razão Cínica. Tradução de Marco Casanova; Paulo Soethe; Pedro Costa Rego; Mauricio Mendonça Cardozo; Ricardo Hiendlmayer: Estação Liberdade, 2001.


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