MÁSCARAS DO HUMANO E SUA VONTADE DE INVERDADE NA GENESE DO SOFRIMENTO

 





 

“Se queres ser feliz nesse mundo,

 estrangula sua consciência!”

― Friedrich Nietzsche

 

 

Thiago Carvalho de Souza

 

 

A VONTADE EM SCHOPENHAUER

A vontade é um conceito central na filosofia de Arthur Schopenhauer, amplamente discutido em sua obra principal "O Mundo como Vontade e Representação". Schopenhauer apresenta uma visão pessimista da existência humana e procura desvendar os mistérios do mundo através do conceito de vontade. Este texto explora o conceito de vontade em Schopenhauer, utilizando os trechos fornecidos como base para uma análise aprofundada.

Schopenhauer viveu durante um período tumultuado na Europa, marcado por guerras e sofrimento. Ele rejeitou o otimismo característico da razão iluminista, buscando respostas mais profundas para o sofrimento humano. Sua filosofia é marcada pelo pessimismo e pela percepção da irracionalidade do mundo. Segundo Schopenhauer, o mundo é governado por uma força cega e irracional denominada vontade, que consome tudo ao seu redor.

Para Schopenhauer, a razão é impotente frente à vontade. Ele argumenta que somos marionetes nas mãos dessa força avassaladora, incapazes de escapar de sua influência. Nesse cenário, a razão humana perde sua capacidade de proteger o indivíduo, deixando-o vulnerável em um mundo indiferente e cruel.

Em "O Mundo como Vontade e Representação", Schopenhauer traça um caminho filosófico que começa com o conhecimento como representação e culmina em uma ética da vontade. A obra está dividida em quatro tomos, cada um explorando diferentes aspectos desse conceito fundamental.

No primeiro tomo, Schopenhauer discute a representação submetida ao princípio da razão, tratando do conhecimento dos fenômenos que nos cercam. Essa parte reflete a influência de Immanuel Kant, especialmente sua "Crítica da Razão Pura". Schopenhauer adota a premissa kantiana de que nossa compreensão da realidade é mediada pelos fenômenos, ou seja, pelo que percebemos através dos sentidos.

O segundo tomo, "A Objetivação da Vontade", apresenta a perspectiva da vontade e sua manifestação na realidade fenomênica. Schopenhauer explora a natureza em suas diversas formas, desde as forças inorgânicas até as orgânicas. Ele vê o corpo como um meio de acesso à essência da coisa-em-si e à vontade de vida. Aqui, a vontade se manifesta na natureza, governando tanto os processos inanimados quanto os vivos.

No terceiro tomo, "A Representação Independente do Princípio da Razão: a Ideia Platônica: o Objeto da Arte", Schopenhauer explora a estética e a metafísica do belo. Ele discute os diferentes graus de manifestação da vontade na arte, introduzindo o conceito do gênio como uma forma de negação da vontade. Para Schopenhauer, a arte oferece uma fuga temporária da vontade, permitindo ao observador contemplar a essência das coisas sem a interferência dos desejos e das necessidades.

Finalmente, no quarto tomo, "Alcançando o Conhecimento de Si: Afirmação ou Negação da Vontade de Vida", Schopenhauer aborda as conclusões éticas de sua filosofia. Ele discute a negação da vontade como uma filosofia prática e uma maneira ética de viver. Schopenhauer introduz o conceito do asceta como uma encarnação da negação da vida, do mundo e da vontade em si. O asceta, ao renunciar aos desejos e às paixões, alcança um estado de paz interior e liberação do sofrimento.

A influência de Kant no pensamento de Schopenhauer é evidente na maneira como este último desenvolve suas teorias a partir da premissa kantiana sobre a percepção do mundo. Para Kant, nossa compreensão da realidade é mediada pelos fenômenos e pelos númenos, ou seja, pelos nossos sentidos e pelas coisas em si. Kant argumenta que construímos uma visão de mundo baseada em nossas experiências sensoriais, mas somos incapazes de conhecer a realidade última, o númeno.

Schopenhauer concorda com essa visão limitada do conhecimento humano e acrescenta uma reflexão sobre a natureza humana. Ele argumenta que aceitamos os limites do nosso conhecimento como se fossem os limites do próprio mundo, fazendo com que o mundo se torne uma representação individual. Para Schopenhauer, se nossa visão de mundo é limitada pelos nossos sentidos, então nossa compreensão do mundo é restrita pelas capacidades sensoriais. Além disso, ele sugere que somos apenas parte de uma vontade universal maior, que não podemos experimentar plenamente.

Portanto, todos nós acabamos considerando os limites da nossa visão individual como os limites do mundo como um todo. Essa ideia é discutida em "O Mundo como Vontade e Representação", onde Schopenhauer desenvolve uma concepção interessante sobre os limites do conhecimento e introduz o conceito fundamental de sua filosofia: a vontade. A vontade, segundo Schopenhauer, é a força motriz por trás de todas as ações e eventos no mundo. Ela é irracional e cega, guiando o comportamento humano de maneira imprevisível e muitas vezes destrutiva.

A análise de Schopenhauer sobre a vontade e sua relação com a razão revela uma visão sombria da existência humana. Ele argumenta que a vontade é a fonte de todo sofrimento, pois nos impulsiona a buscar incessantemente satisfação em um mundo onde a verdadeira satisfação é inalcançável. Essa busca incessante gera frustração e dor, perpetuando um ciclo de sofrimento sem fim. Schopenhauer sugere que a única maneira de escapar desse ciclo é através da negação da vontade, uma prática que pode ser alcançada por meio da arte, da contemplação filosófica ou da ascese.

A contemplação estética, segundo Schopenhauer, oferece uma forma temporária de alívio do sofrimento causado pela vontade. Quando apreciamos a beleza de uma obra de arte ou da natureza, somos capazes de transcender nossos desejos e preocupações imediatas, experimentando um estado de paz e serenidade. No entanto, essa fuga é apenas temporária e não oferece uma solução duradoura para o problema da vontade.

A filosofia prática da negação da vontade, como discutida por Schopenhauer, envolve uma renúncia mais completa e permanente dos desejos e das paixões. Isso pode ser alcançado através de uma vida ascética, onde o indivíduo se desprende das necessidades materiais e busca uma existência de simplicidade e contemplação. O asceta, ao renunciar à vontade, alcança um estado de tranquilidade interior e liberação do sofrimento.

Razão, verdade e subjetividade em Kant

O princípio da razão suficiente e a causalidade são conceitos filosóficos fundamentais que nos ajudam a compreender a relação entre os eventos e a estrutura do mundo.

O princípio da razão suficiente, formulado por Gottfried Wilhelm Leibniz, estabelece que nada acontece sem uma razão ou causa suficiente. Para qualquer fato ou evento, deve haver uma explicação que justifique por que ele é assim e não de outra maneira. Em outras palavras, tudo o que existe ou acontece deve ter uma razão suficiente que possa ser compreendida e explicada.

A causalidade, por sua vez, é o princípio que afirma que todo evento ou estado de coisas é causado por outro evento ou estado de coisas. Esse conceito é central na filosofia, especialmente na obra de David Hume, que investigou como percebemos e entendemos a conexão causal entre os eventos. A causalidade nos permite inferir relações de causa e efeito, estabelecendo uma sequência lógica e temporal entre os acontecimentos.

No contexto da obra "O Mundo como Vontade e Representação" de Arthur Schopenhauer, esses princípios são cruciais para entender a dualidade que ele propõe entre vontade e representação. Schopenhauer, inspirado por Immanuel Kant, argumenta que o mundo pode ser visto de duas maneiras distintas: como vontade, que é a essência irracional e impulsiva do mundo, e como representação, que é a maneira pela qual os indivíduos percebem e organizam suas experiências.

Para Schopenhauer, a verdade do mundo fenomenal (o mundo das aparências e representações) depende da perspectiva do sujeito. É o sujeito que organiza e unifica as experiências por meio da consciência, da lógica, da gramática e de qualquer forma de representação do mundo. A causalidade entra em jogo aqui, pois é através das relações causais que o sujeito consegue compreender e explicar o mundo ao seu redor. Cada evento é ligado a outro por uma cadeia de causas e efeitos, permitindo que o sujeito faça sentido do mundo fenomenal.

O princípio da razão suficiente também desempenha um papel importante, pois cada representação que o sujeito tem do mundo deve ter uma razão suficiente para existir. Isso significa que, para cada percepção ou ideia que temos, deve haver uma explicação subjacente que justifique sua existência e forma. Dessa maneira, os princípios da razão suficiente e da causalidade são ferramentas essenciais para compreender como o sujeito percebe e organiza o mundo, criando um entendimento coeso e estruturado da realidade.

Portanto, esses princípios nos permitem compreender a verdade na filosofia de Schopenhauer ao fornecer um quadro lógico e racional para explicar a maneira como percebemos e interagimos com o mundo. Eles ajudam a esclarecer como as nossas representações do mundo estão fundamentadas em causas e razões suficientes, unificando as nossas experiências em uma compreensão coerente da realidade.

Em "O Mundo como Vontade e Representação", Arthur Schopenhauer delineia uma filosofia que se fundamenta na dualidade da percepção do mundo: como vontade e como representação. A estrutura da obra revela uma visão complexa onde a verdade se dá no horizonte do sujeito, o qual é, conforme mostrado por Immanuel Kant, o ponto de partida do mundo fenomênico. É no sujeito que as experiências são organizadas e unificadas, possibilitando a existência da consciência, da lógica, da gramática e de qualquer representação do mundo.

Para Kant, nossa percepção do mundo é mediada pelos fenômenos, organizados pelo sujeito a partir de suas faculdades sensoriais e cognitivas. Ele argumenta que sem a unidade do sujeito, não haveria como estruturar uma experiência coerente da realidade. Essa organização se dá por meio do princípio da razão suficiente e da causalidade, que nos permite compreender as relações entre os fenômenos. Portanto, qualquer contradição à subjetividade racional humana não pode ser considerada verdadeira e, por conseguinte, deve ser vista como falsa. Sem a subjetividade, não haveria critério para a verdade ou falsidade, pois tais conceitos dependem da estrutura racional que o sujeito impõe à experiência.

Schopenhauer, desenvolvendo essa base kantiana, introduz a ideia de um mundo unificado que se manifesta de duas formas: através da vontade e da representação. A representação refere-se ao modo como percebemos e organizamos o mundo fenomênico, enquanto a vontade é a força subjacente e irracional que impulsiona todas as coisas.

VONTADE DE INVERDADE

Em vista do texto precedente, compreendemos que a verdade é possível visto que o sujeito é a síntese do princípio da causalidade e da razão suficiente, de maneira que se os excluímos, não podemos conhecer nada – pois também não teríamos representação de nada. Ora, nós temos representação das coisas. Por exemplo, desse texto, assim como todos os demais objetos ao nosso redor. 

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               A psicanálise, desde sua origem, tem se destacado por sua capacidade de investigar o que o ser humano obscurece ou não expressa diretamente, mas inevitavelmente revela através de suas ações e comportamentos. Essa abordagem pode ser comparada ao olhar de um caçador atento aos movimentos de sua presa. A psicanálise examina a mente humana sob múltiplos ângulos, focando em aspectos como a neurose, que se revela não apenas como uma psicopatologia, mas também como um estudo dos movimentos lógico-psicológicos que condicionam não apenas a neurose, mas também o erro de julgamento.

Antes de aprofundar na psicanálise, é essencial definir e contextualizar o conceito de vontade de inverdade. Em termos sumários, a vontade de inverdade pode ser vista como o correlato e contraponto à vontade de verdade, um conceito criticado por Nietzsche. A vontade de verdade, na visão nietzschiana, é a busca incessante pelo conhecimento objetivo e pelas "verdades" do mundo, frequentemente em detrimento das experiências subjetivas e instintivas. Essa vontade de verdade tem uma correspondência com o princípio de realidade de Freud, que se refere à adaptação e resposta realista às demandas do mundo externo.

Por outro lado, a vontade de inverdade pode ser entendida como análoga ao princípio do prazer em Freud. O princípio do prazer refere-se ao desejo inato de busca pelo prazer imediato e evitação de qualquer forma de desconforto. Ele está associado às pulsões e aos impulsos instintivos presentes no inconsciente e busca a gratificação instantânea dos desejos e necessidades, sem considerar as consequências ou a viabilidade realista dessas ações. Esse princípio opera através do processo primário do pensamento, que é ilógico, não linear e não cronológico.

Contrastando com isso, o princípio da realidade é um princípio adaptativo que surge com o desenvolvimento psicológico. Ele representa a compreensão gradual da realidade externa e das limitações impostas pelo mundo ao nosso redor. O princípio da realidade busca adiar a gratificação, levando em conta as restrições do ambiente, a necessidade de planejamento e a tomada de decisões ponderadas. Este princípio é guiado pelo processo secundário do pensamento, que é lógico, linear e orientado para a realidade.

A fundamentação dos princípios do prazer e da realidade pode ser entendida através da tópica e do modelo econômico propostos por Freud. A tópica refere-se à estrutura da mente, dividida em três instâncias: o id, o ego e o superego. O id é a parte mais primitiva e governada pelo princípio do prazer, representando os impulsos e desejos irracionais. O ego é responsável por mediar entre o id e o mundo externo, buscando atender às demandas do id de forma realista e adaptativa, seguindo o princípio da realidade. Por fim, o superego representa a internalização das normas e valores sociais, que impõem restrições e influenciam as escolhas do ego.

No modelo econômico, Freud utiliza uma analogia com um sistema de energia. Ele sugere que a mente possui uma quantidade limitada de energia psíquica, chamada de "carga libidinal". Essa energia é distribuída entre diferentes processos mentais e é constantemente mobilizada e transformada. O princípio do prazer busca descarregar essa energia de forma imediata, enquanto o princípio da realidade visa gerenciar e distribuir essa energia de maneira eficiente, levando em conta as demandas externas e internas.

A vontade de inverdade, portanto, pode ser vista como uma inclinação a ignorar a realidade em favor do prazer imediato. Essa dinâmica é observada na formação de neuroses e outras psicopatologias, onde o indivíduo pode negar aspectos da realidade que são dolorosos ou desconfortáveis, preferindo uma visão distorcida que oferece alívio temporário. No entanto, essa negação da realidade frequentemente resulta em conflitos internos e sofrimento, uma vez que a energia psíquica é mal gerida e as demandas do id não são equilibradas de forma adequada pelo ego.

A psicanálise investiga esses processos para entender como o sujeito organiza e unifica suas experiências. A partir da compreensão de Freud sobre a mente humana, podemos ver como a verdade emerge no horizonte do sujeito.

Nesse contexto, destaca-se que que há uma comunhão entre a noção de Vontade schopenhaueriana, vontade de inverdade, segundo este meu conceito, e princípio do prazer em Freud.

Assim, em Schopenhauer e Kant, sem a unidade do sujeito, não seria possível ter consciência, lógica, gramática ou qualquer representação do mundo. O princípio da razão suficiente e a causalidade são fundamentais nesse contexto, pois sem eles não poderíamos chegar a algo como a verdade ou mesmo a mentira. A verdade, portanto, é uma construção que se baseia no sujeito transcendental kantiano de organizar suas percepções e experiências de forma coerente.

Schopenhauer, ao desenvolver sua filosofia, também toca nesses temas ao discutir o papel do sujeito na formação da realidade. Em "O Mundo como Vontade e Representação", ele argumenta que o mundo é percebido de duas maneiras: através da vontade e da representação. As coisas se manifestam tanto pela vontade irracional quanto pela forma como são representadas na mente do sujeito. A vontade, sendo atemporal e caótica, permeia todas as coisas e é a força motriz por trás das ações e eventos do mundo.

Schopenhauer destaca que a vontade não é boa nem má, mas simplesmente irracional. Essa visão contrasta fortemente com os filósofos otimistas de sua época, como Hegel, que viam a história e a realidade como um processo racional e progressivo. Schopenhauer, com seu pessimismo característico, vê a busca pela felicidade como algo fútil, pois a felicidade é apenas uma breve interrupção no constante fluxo de dor e sofrimento que caracteriza a existência.

No entanto, Schopenhauer propõe que a experiência estética pode oferecer uma saída temporária para essa condição de sofrimento. A contemplação do belo, seja na arte, na música ou na natureza, permite ao indivíduo transcender a vontade e experimentar um estado de paz e serenidade. Esse alívio temporário do sofrimento é uma forma de escapar da tirania da vontade, ainda que de maneira efêmera.

A influência de Schopenhauer se estendeu além da filosofia, impactando a psicologia e a psicanálise. Freud, em particular, foi influenciado pela visão de Schopenhauer sobre os impulsos irracionais que governam o comportamento humano. A ideia de que somos movidos por forças inconscientes e irracionais é central tanto na filosofia de Schopenhauer quanto na teoria psicanalítica de Freud.

A psicanálise, portanto, pode ser vista como uma continuação e ampliação das ideias de Schopenhauer, aplicada ao estudo da mente humana e das suas patologias. Ao investigar a neurose e outros distúrbios psicológicos, a psicanálise busca compreender como a vontade de inverdade e a negação da realidade contribuem para o sofrimento humano. Através desse entendimento, é possível desenvolver métodos terapêuticos que ajudem o indivíduo a reconciliar as demandas do princípio do prazer com as exigências do princípio da realidade, promovendo uma integração mais harmoniosa entre o id, o ego e o superego.

A unidade do sujeito, portanto, é fundamental para a formação da verdade. Sem essa unidade, não há como estabelecer um critério para a verdade ou falsidade, pois tais conceitos dependem da estrutura racional que o sujeito impõe à sua experiência. Através do estudo da psicanálise, podemos compreender melhor como a mente humana lida com a tensão entre a busca pelo prazer imediato e a necessidade de enfrentar a realidade, e como isso influencia nossa percepção da verdade e nossa capacidade de viver de maneira satisfatória e integrada.

               Dito isso, podemos seguir.

               Ora, uma vez que conhecemos os princípios de realidade e de prazer, a vontade de verdade e de inverdade, podemos retornar à questão apresentada no primeiro parágrafo. Iremos, assim, procurar delinear o princípio de prazer como elemento basilar da fantasia psicanalítica e, posteriormente, mostrar como essa fantasia se funda em uma fantasia maior – mítica, política e social – expressa por Pierre Weil em seu livro "A Neurose do Paraíso Perdido".

O que consiste tudo isso?

Weil sugere que existe uma fantasia de separatividade do humano, que ele busca recompor. Essa fantasia seria secundária a três outras primárias. A primeira é a fantasia do sujeito, que nos faz crer na existência real de um Ego; a segunda é a fantasia do objeto, que consiste na crença de que os objetos à nossa vista e mão são realmente como nos parecem ser; e a terceira é a fantasia da relação de objeto, que nos induz a crer na separatividade do sujeito-objeto e dos demais objetos entre si.

Para compreender o conceito de fantasia segundo Pierre Weil, devemos entendê-la como uma crença ingênua na realidade aparente, ou seja, um baixo índice perceptivo do que realmente é. Weil descreve o psiquismo operando através de ficções mentais e ilusões psicossociais que, no entanto, têm capacidade de operar no mundo real. Podemos pensar nessas fantasias como software autoprogramáveis, ou seja, programas psicossociais que se formam espontaneamente, sem um programador externo.

Aqui, podemos concordar com Nietzsche: não há fatos, somente interpretações (ainda que haja interpretação adequada e inadequada). Todos os sistemas interpretativos seriam autoformações ou, ainda, programas psicossociais (ou software psicossociais). A neurose do paraíso perdido descrita por Weil está intimamente relacionada com a vontade de inverdade, uma questão elucidada ao final desta seção.

Como toda neurose, na perspectiva psicanalítica, a neurose do paraíso perdido tem sua origem na infância. Weil procura explicar, com base em Freud, a origem etiológica tripla das neuroses, que têm fatores biológicos, filogenéticos e psicológicos.

No âmbito biológico, a união do feto com sua mãe durante a gestação é uma das fontes da neurose, pois o útero é geralmente o local mais seguro e confortável para um organismo. A separação da mãe, esse primeiro vínculo, é traumática e nos predispõe a procurar novamente esse "paraíso". A busca pelo paraíso perdido, portanto, seria uma expressão de uma memória profunda.

No âmbito filogenético, a neurose se relaciona com traços, engramas ou memórias desse passado longínquo da humanidade, acessados através de sessões de regressão, hipnose, etc. Em um segundo momento, a neurose se relaciona com os traços deixados pela memória coletiva – religiões, mitos, costumes, histórias, linguagem.

No âmbito psicológico, a neurose do paraíso perdido é pensada como um conflito egóico entre as demandas de prazer do Id e as de dever do Superego. O Ego procura, frente à realidade do mundo exterior, atender a várias demandas, especialmente as pulsionais, que exigem prazer. Dependendo do contexto, esse conflito pode instalar uma neurose, ou seja, uma instabilidade psicossocial.

Segundo Weil, esses fatores são suficientes, com base em diversos estudos transculturais, para mostrar que todos os povos têm uma demanda estrutural por retorno ao tal paraíso perdido. No budismo, por exemplo, isso é conhecido como Nirvana. Assim, todos os povos e, portanto, todas as pessoas, têm uma neurose/fantasia de alcançar um lugar ou estado no qual possam viver de modo pleno, isento de males e contradições, e embebedado pelo êxtase divino.

Weil sugere que a busca pela felicidade e por sensações agradáveis de todos os tipos – ver e contemplar formas humanas, o corpo humano, cenas agradáveis do cinema, saborear iguarias deliciosas, trocar carícias sensuais, o orgasmo, cantar ou ouvir música, sentir o perfume das flores e o cheiro do corpo feminino (no caso dos homens) – assim como a busca pelo amor genuíno, a curiosidade intelectual e o gosto pela pesquisa, são modos de procura por acessar essa dimensão secreta do ser, esse "paraíso" perdido.

A partir disso, fica claro por que a humanidade se orienta pelo princípio do prazer tanto quanto possível e é tão afinada à vontade de inverdade (minha alcunha). É justamente essa vontade de inverdade – expressa nas três fantasias fundamentais do humano: a fantasia do sujeito (crença na existência real de um Ego), a fantasia do objeto (crença de que os objetos são realmente como nos parecem ser) e a fantasia da relação de objeto (crença na separatividade do sujeito-objeto e dos demais objetos entre si) – que viabiliza a manutenção das fantasias psicossociais ligadas aos erros lógicos, metafísicos e psicológicos, bem como ao princípio do prazer.

JOGO VIDA E MORTE: LUTA PELO PODER, DINHEIRO E PRAZER

Ora, uma vez que conhecemos os princípios de realidade e de prazer, a vontade de verdade e de inverdade, podemos retornar à questão apresentada no primeiro parágrafo. Iremos, assim, procurar delinear o princípio de prazer como elemento basilar da fantasia psicanalítica e, posteriormente, mostrar como essa fantasia se funda em uma fantasia maior – mítica, política e social – expressa por Pierre Weil em seu livro "A Neurose do Paraíso Perdido". Usaremos, além disso, a noção de complexidade de Edgar Morin e a filosofia budista para explorar como essas fantasias reverberam nos atos humanos e na sociedade, utilizando casos concretos para ilustrar esses conceitos.

A Fantasia da Separatividade e suas Ramificações

Weil sugere que existe uma fantasia de separatividade do humano, que ele busca recompor. Essa fantasia seria secundária a três outras primárias: a fantasia do sujeito, que nos faz crer na existência real de um Ego; a fantasia do objeto, que consiste na crença de que os objetos à nossa vista e mão são realmente como nos parecem ser; e a fantasia da relação de objeto, que nos induz a crer na separatividade do sujeito-objeto e dos demais objetos entre si. Essas fantasias criam uma percepção ilusória da realidade, sustentando o que Weil chama de "neurose do paraíso perdido".

Para compreendermos melhor essas fantasias, podemos usar a noção de complexidade de Edgar Morin. Morin argumenta que a realidade é composta por múltiplos níveis e dimensões que se inter-relacionam de maneira complexa e inseparável. Assim, as fantasias descritas por Weil são parte de um sistema complexo de crenças e percepções que moldam nossas ações e interações sociais.

Em minha opinião, a filosofia budista também oferece uma perspectiva valiosa ao considerar essas fantasias como formas de ignorância (avidya), que nos mantêm presos ao ciclo de sofrimento (samsara). O budismo ensina que a verdadeira natureza da realidade é interdependente e impermanente, e que nossas percepções de separatividade e ego são ilusórias.

O Jogo de Vida e Morte

Sumariamente, o jogo de vida e morte consiste numa disputa velada entre os homens, assim como num acordo subliminar e social, no estabelecimento de regras e posições sociais – ou seja, hierarquias e diferenças – que viabilizam essa procura pelo paraíso perdido tradicionalmente radicado no poder, no dinheiro e no prazer. Examinar a luta pelo poder, a avareza e a cobiça humana revela como esses impulsos estão enraizados na vontade de inverdade.

A Luta pelo Poder

A busca pelo poder é um dos principais motores da ação humana, refletindo a vontade de inverdade ao criar e sustentar hierarquias sociais e políticas. A hierarquia militar e de Estado exemplifica isso, onde a estrutura de poder é rigidamente mantida e defendida. Um exemplo contemporâneo é o regime de Kim Jong-un na Coreia do Norte, onde o poder absoluto é mantido através da força, repressão e controle da informação, sustentando uma fantasia de separatividade e superioridade.

A Procura Universal por Prazer

A busca universal pelo prazer se manifesta em diversas formas, todas ligadas ao princípio do prazer, a Vontade e à fantasia de inverdade. Essa procura é evidente em comportamentos como a prostituição, relações extraconjugais, consumo de pornografia e outros atos que buscam gratificação imediata. Esses comportamentos refletem a tentativa de acessar um "paraíso perdido" de satisfação contínua.

A Produção Psicossocial de Sofrimento

A produção psicossocial de sofrimento está intimamente ligada às fantasias de separatividade e à vontade de inverdade. Isso pode ser observado em diversos fenômenos sociais:

Violência Masculina contra a Mulher: A imposição da força e poder sobre o outro é uma forma de afirmar a separatividade e a superioridade ilusória. Casos de violência doméstica, como o aumento de denúncias durante a pandemia de COVID-19, evidenciam como a violência é usada para manter o controle e a hierarquia dentro das relações.

Hierarquia Militar e de Estado: A manutenção de poder e controle através de estruturas hierárquicas reflete a necessidade de afirmar a própria posição no topo da pirâmide social, muitas vezes à custa da liberdade e bem-estar dos outros.

Prostituição e Relações Extraconjugais: Essas práticas são manifestações da busca por prazer imediato, muitas vezes resultando em sofrimento tanto para os indivíduos envolvidos quanto para suas famílias. Elas refletem a fantasia de que a satisfação pode ser alcançada independentemente das consequências morais e sociais.

Corrupção e Crime: A busca pelo enriquecimento rápido e pelo poder através de meios ilícitos é uma forma de expressar a vontade de inverdade, ignorando as normas sociais e éticas. Casos de corrupção, como o escândalo da Lava Jato no Brasil, mostram como a cobiça e a avareza podem corroer as estruturas sociais e políticas.

Mercado e Capitalismo: O sistema capitalista, com sua ênfase no consumo e na acumulação de riqueza, pode ser visto como uma expressão da fantasia de separatividade e da busca pelo paraíso perdido através do poder econômico. A crise financeira de 2008 é um exemplo de como a avareza e a especulação podem levar ao colapso de sistemas inteiros, causando sofrimento global.

Pedofilia e Pornografia: Esses atos extremos de busca por prazer imediato às custas de outros refletem a desconexão e a separatividade entre o sujeito e o objeto, resultando em danos profundos para as vítimas e perpetuando ciclos de abuso e sofrimento.

A Neurose do Paraíso Perdido e a Vontade de Inverdade

A neurose do paraíso perdido, conforme descrita por Weil, está em íntima relação com a vontade de inverdade. Essa neurose origina-se na infância e é influenciada por fatores biológicos, filogenéticos e psicológicos.

Fatores Biológicos: A união do feto com a mãe no útero representa um estado de segurança e conforto absolutos. A separação desse vínculo é traumática e cria uma busca inconsciente por esse "paraíso" perdido ao longo da vida.

Fatores Filogenéticos: As memórias e traços herdados do passado distante da humanidade, juntamente com a memória coletiva expressa em religiões, mitos e costumes, reforçam a ideia de um estado ideal de existência que foi perdido.

Fatores Psicológicos: A neurose do paraíso perdido é marcada pelo conflito entre as demandas de prazer do Id e as exigências do Superego, com o Ego tentando mediar essas forças opostas. Esse conflito pode levar à instabilidade psicossocial e ao comportamento neurótico.

A Arte do Disfarce: Regras Morais e o Mundo Mundano

As regras morais tradicionais, incluindo as cristãs, ou ainda, as seculares, podem ser vistas através da lente da arte do disfarce. Elas frequentemente servem para mascarar os verdadeiros impulsos e desejos humanos, permitindo que as pessoas mantenham uma aparência de moralidade enquanto perseguem suas próprias satisfações. Essa dissonância entre aparência e realidade é uma manifestação da vontade de inverdade, onde os indivíduos criam narrativas que justificam seus comportamentos e mantêm a coesão social.

Por exemplo, o caso recente de um líder religioso envolvido em escândalos sexuais e financeiros ilustra como as regras morais podem ser usadas para disfarçar comportamentos que buscam poder e prazer. Esses indivíduos muitas vezes pregam uma moralidade rígida enquanto, em segredo, violam esses mesmos princípios para satisfazer suas próprias vontades. Ao mesmo tempo que o homem não religioso procura obstruir sua consciência moral – uma faculdade mental – em favor de narrativas capazes de relativizar seus atos e intenções.

A Complexidade das Fantasias Humanas

Utilizando a noção de complexidade de Edgar Morin e a filosofia budista, podemos compreender que as fantasias descritas por Pierre Weil não são apenas ilusões individuais, mas fazem parte de um sistema complexo de crenças e comportamentos que moldam a sociedade. A busca pelo paraíso perdido, seja através do poder, do prazer, do saber ou da riqueza, é uma expressão da vontade de inverdade que permeia todos os aspectos da vida humana. Esses impulsos são tanto a fonte de nosso sofrimento quanto a motivação para nossas ações, refletindo a complexidade intrínseca da condição humana.

3. A RECUSA A REALIDADE;

A recusa da realidade é um fenômeno intrínseco à natureza humana, manifestando-se de várias formas através da cultura, das artes, da filosofia, da ciência e da religião. Esses macrossistemas, por vezes, servem como mecanismos de obstrução do olhar ou de desvio do campo de visão das nossas circunstâncias concretas. Através deles, o ser humano constrói e alimenta fantasias que, embora possam oferecer conforto e sentido, frequentemente resultam na negação da realidade objetiva. Esta recusa, paradoxalmente, pode ser vista como a base do conhecimento, uma questão ligada aos princípios lógicos do pensamento filosófico: identidade e contradição.

Cultura e Fantasia

A cultura, abrangendo desde manifestações populares até eruditas, é um terreno fértil para a construção de fantasias. Na arte, por exemplo, a representação do mundo é filtrada pela subjetividade do artista, que transforma a realidade em algo novo e, muitas vezes, distante da verdade factual. A literatura, o cinema e a música são formas de expressão que frequentemente oferecem escapes temporários da realidade, permitindo que os indivíduos mergulhem em mundos fictícios onde suas aspirações e desejos podem ser realizados.

A filosofia e a ciência, embora dedicadas ao entendimento da realidade, também não estão imunes à construção de fantasias. Os grandes sistemas filosóficos, desde Platão com sua Teoria das Ideias até as concepções metafísicas de Hegel, são tentativas de criar modelos compreensivos da realidade que, no entanto, muitas vezes se distanciam do concreto e do empírico. Na ciência, a busca pela verdade objetiva pode levar à construção de teorias que, embora baseadas em dados observáveis, podem ser reformuladas ou refutadas à medida que novos conhecimentos são adquiridos.

A religião é, talvez, a área onde a recusa da realidade é mais evidente. As narrativas religiosas oferecem explicações e consolos frente aos mistérios da existência, propondo realidades transcendentais que vão além do mundo físico. Essas crenças podem proporcionar sentido e propósito, mas também podem levar à rejeição de evidências empíricas que contradizem os dogmas estabelecidos.

A Economia da Recusa: Política e Sexualidade

A produção do sofrimento humano pode ser compreendida através de uma análise das grandes categorias da vida social: economia, política e sexualidade. Em cada uma dessas áreas, a recusa da realidade em favor das fantasias pode ter consequências profundas e duradouras.

Na economia, a construção de fantasias é evidente na forma como o consumo é incentivado como um caminho para a felicidade. O marketing e a publicidade criam desejos artificiais e promovem a ilusão de que a aquisição de bens materiais é a chave para o bem-estar. Esse consumismo desenfreado, entretanto, ignora as realidades da desigualdade econômica e da sustentabilidade ambiental. A crise financeira de 2008, por exemplo, expôs como a recusa em reconhecer os riscos e as limitações do sistema financeiro global pode levar a desastres econômicos de grande escala.

A política também é um campo onde as fantasias frequentemente sobrepõem-se à realidade. Políticos e partidos criam narrativas que prometem soluções fáceis para problemas complexos, apelando para os desejos e medos dos eleitores. A ascensão de líderes populistas em várias partes do mundo demonstra como a manipulação de fantasias coletivas pode levar a decisões políticas que ignoram os fatos e a racionalidade. O Brexit é um exemplo recente, onde promessas de recuperação da soberania e prosperidade econômica contrastaram com a realidade das consequências econômicas e sociais da saída do Reino Unido da União Europeia.

Na sexualidade, a recusa da realidade é manifestada na busca incessante pelo prazer imediato, frequentemente à custa de relacionamentos autênticos e duradouros. A pornografia e a prostituição são indústrias que exploram fantasias sexuais, muitas vezes perpetuando imagens e expectativas irrealistas sobre o sexo. Isso pode levar a problemas como a objetificação do corpo, a desvalorização da intimidade emocional e a perpetuação de comportamentos abusivos. Casos de abuso e exploração sexual, que frequentemente chegam às manchetes, mostram como a recusa em lidar com a realidade das relações humanas pode resultar em sofrimento significativo.

Sociedade, Economia e Sexualidade

A compreensão do sofrimento humano não pode ser completa sem considerar a interseção entre sociedade, economia e sexualidade. Essas áreas estão profundamente interligadas, e a recusa da realidade em qualquer uma delas pode ter repercussões nas outras.

Historicamente, a sociedade tem construído hierarquias e normas que frequentemente ignoram as realidades individuais em favor de manter estruturas de poder e controle. A discriminação de gênero, racial e de classe são exemplos de como fantasias sobre a superioridade de certos grupos são usadas para justificar a opressão e a exploração. Movimentos de justiça social, como o feminismo e o movimento pelos direitos civis, têm trabalhado para desmantelar essas fantasias e confrontar a realidade da desigualdade e da injustiça. No entanto, tais movimentos socioculturais não escapam de críticas, uma vez que em seu cerne trazem contradições inescrupulosas (não raramente).

Na economia, a globalização e o capitalismo neoliberal têm promovido a ideia de que o crescimento econômico ilimitado é não apenas possível, mas desejável. Essa fantasia ignora as limitações dos recursos naturais e a necessidade de sustentabilidade. As mudanças climáticas e a degradação ambiental são consequências diretas dessa recusa em reconhecer os limites da nossa capacidade de exploração e consumo.

Na sexualidade, a imposição de normas rígidas sobre o comportamento sexual e a identidade de gênero pode levar ao sofrimento psicológico e à repressão. A aceitação crescente da diversidade sexual e de gênero é um movimento para confrontar essas fantasias normativas e reconhecer a realidade da experiência humana.

Casos Concretos: A Recusa da Realidade em Ação

Para ilustrar como a recusa da realidade opera na prática, podemos considerar alguns casos recentes que destacam os efeitos dessa dinâmica.

1. A Crise dos Opioides nos EUA: A epidemia de dependência de opioides é um exemplo de como a recusa em enfrentar as realidades da dor física e emocional pode levar a uma crise de saúde pública. Empresas farmacêuticas promoveram agressivamente analgésicos, minimizando os riscos de dependência. Ao alimentar a fantasia de uma solução fácil para a dor, ignoraram as complexas causas subjacentes do sofrimento humano, resultando em uma epidemia de dependência e overdose.

2. A Negação das Mudanças Climáticas: A resistência em aceitar a realidade das mudanças climáticas é um exemplo claro de recusa da realidade em favor de interesses econômicos e políticos. Negacionistas do clima, apoiados por setores da indústria de combustíveis fósseis, perpetuam a fantasia de que o crescimento econômico pode continuar indefinidamente sem consequências ambientais. Esse negacionismo impede ações necessárias para mitigar os efeitos das mudanças climáticas, colocando em risco o futuro do planeta.

3. O Movimento Antivacina: A rejeição das vacinas é outro exemplo de como a recusa da realidade pode ter consequências graves. Movimentos antivacina promovem a ideia de que as vacinas são perigosas, apesar das evidências científicas esmagadoras que comprovam sua segurança e eficácia. Essa recusa em aceitar a realidade científica resulta em surtos de doenças evitáveis, colocando em risco a saúde pública.

4. A RECUSA À REALIDADE E À VERDADE

A recusa da verdade é um fenômeno profundamente enraizado na psicologia e na estrutura social humana. Ela aponta para a realidade e exige a suspensão de algumas fantasias, mas enfrentar essa verdade muitas vezes é doloroso e desconcertante. A oposição à verdade pode ser vista como uma defesa contra a dissonância cognitiva e emocional que surge quando nossas crenças fantasiosas são desafiadas. Nesse contexto, aqueles que se opõem à verdade são frequentemente rotulados como burros, ressentidos ou tolos. No entanto, essa oposição é sustentada por diversos mecanismos de contenção da verdade, incluindo psicopatologia, cinismo, mentira e a instituição de convenções sociais. Estes mecanismos refletem as moções reativas da estrutura psicossocial frente às suas disposições fantasiosas sobre si mesmos, a vida e o mundo.

A Psicopatologia da Recusa

A psicopatologia oferece uma perspectiva crucial para entender a recusa da verdade. Distúrbios como a neurose e a psicose são, em muitos casos, formas de evitar a realidade dolorosa. Sigmund Freud, em sua obra, destaca que a neurose frequentemente se manifesta como uma fuga da realidade para um mundo de fantasia onde os desejos reprimidos podem ser realizados sem enfrentar as limitações impostas pelo mundo externo. A psicose, por outro lado, envolve uma ruptura mais radical com a realidade, onde o indivíduo cria uma nova "realidade" para substituir aquela que é insuportável.

A recusa da verdade pode ser vista como um mecanismo de defesa que protege o ego da dor e do sofrimento. Por exemplo, um indivíduo que sofre de transtorno de personalidade narcisista pode negar qualquer crítica ou falha pessoal, construindo uma imagem grandiosa de si mesmo que mascara suas inseguranças profundas. Essa recusa em aceitar a verdade sobre suas limitações e falhas é uma tentativa de evitar o colapso do ego.

O Cinismo como Defesa

O cinismo é outra forma de recusa da verdade que opera como um mecanismo de defesa. Ao adotar uma atitude cínica, o indivíduo pode desvalorizar e desacreditar a verdade, especialmente quando esta expõe as hipocrisias e contradições do seu próprio comportamento ou das normas sociais. O cínico evita a dor de confrontar a verdade ao desdenhar dela, projetando uma postura de superioridade, descrédito, indiferença e desilusão.

Um exemplo clássico de cinismo é encontrado no comportamento de alguns políticos que, ao serem confrontados com suas próprias corrupções e falhas, reagem com desprezo pelas investigações e acusações, tratando-as como ataques políticos infundados. Esse cinismo não apenas protege o indivíduo da verdade desconfortável, mas também mina a confiança pública nas instituições que buscam estabelecer a verdade.

A Mentira e a Instituição de Convenções

A mentira é uma ferramenta poderosa na recusa da verdade. Tanto em nível pessoal quanto social, a mentira pode servir para proteger interesses, evitar conflitos ou manter uma imagem positiva. A mentira institucionalizada, por meio da propaganda e da manipulação da informação, é uma forma de manter o controle e o poder, criando realidades alternativas que sustentam as fantasias desejadas.

A instituição de convenções sociais também desempenha um papel crucial na recusa da verdade. As normas e convenções estabelecem o que é aceitável e esperado, muitas vezes ocultando verdades desconfortáveis. Essas convenções criam uma ilusão de ordem e previsibilidade, mas frequentemente resultam em conformidade cega e repressão da verdade. Por exemplo, as normas de gênero podem impor papéis rígidos e expectativas que ignoram a diversidade e a complexidade da experiência humana, perpetuando injustiças e sofrimentos.

Moções Reativas: Estrutura Psicossocial e suas Defesas

As moções reativas da estrutura psicossocial refletem as maneiras pelas quais a sociedade reage à ameaça que a verdade representa para suas disposições fantasiosas. Essas moções podem incluir a estigmatização de dissidentes, a marginalização de vozes críticas e a repressão de movimentos que buscam revelar verdades inconvenientes.

A estigmatização de dissidentes é uma forma comum de moção reativa. Aqueles que ousam desafiar as fantasias predominantes e expor a verdade são frequentemente rotulados de traidores, lunáticos ou inimigos do estado. Esse processo de estigmatização serve para desacreditar e isolar os indivíduos que trazem à tona verdades desconfortáveis, protegendo a estrutura fantasiosa da sociedade de ser desmantelada.

A marginalização de vozes críticas é outra forma de defesa. As sociedades tendem a marginalizar aqueles que questionam as normas estabelecidas, relegando-os a posições de menor influência e poder. Por exemplo, os movimentos ambientalistas e os ativistas dos direitos humanos muitas vezes enfrentam resistência significativa ao tentar expor verdades sobre a destruição ambiental e as violações dos direitos humanos. Essa marginalização dificulta a disseminação da verdade e mantém o status quo.

A repressão de movimentos que buscam a verdade é uma defesa extrema, mas infelizmente comum. Regimes autoritários frequentemente empregam a repressão violenta para silenciar dissidentes e impedir a revelação de verdades que ameaçam sua legitimidade. O caso da jornalista saudita Jamal Khashoggi, assassinado no consulado da Arábia Saudita em Istambul, é um exemplo chocante de como a verdade pode ser brutalmente suprimida para proteger interesses políticos e econômicos.

A Recusa da Verdade no Contexto Histórico e Epistemológico

Historicamente, a recusa da verdade tem sido uma constante na evolução das sociedades. Desde a Inquisição, que suprimiu as ideias científicas que contradiziam a doutrina religiosa, até os regimes totalitários do século XX que usaram a propaganda para manipular a realidade, a luta entre a verdade e a fantasia tem sido uma força motriz na história humana.

Epistemologicamente, a recusa da verdade desafia os fundamentos do conhecimento e da racionalidade. O princípio da identidade e da contradição, fundamentais para o pensamento filosófico, são frequentemente violados na recusa da verdade. A negação da verdade implica uma ruptura com a lógica e a razão, criando um ambiente onde a manipulação e a distorção podem florescer.

5. O Budismo como Caminho para a Verdade e a Realidade

O budismo, uma das religiões mais antigas do mundo, oferece uma perspectiva única e profunda sobre a relação entre a verdade, a realidade e a natureza humana. Fundamentado nas Quatro Nobres Verdades e no Nobre Caminho Óctuplo, o budismo não apenas aborda os sofrimentos inerentes à vida, mas também oferece um caminho para superar esses sofrimentos através do reconhecimento da realidade como ela é. Esta filosofia é particularmente relevante quando contraposta às ideias apresentadas por Pierre Weil, que discute as ilusões e fantasias.

As Quatro Nobres Verdades e o Reconhecimento da Realidade

As Quatro Nobres Verdades são a base do ensinamento budista e consistem em: a verdade do sofrimento (dukkha), a verdade da origem do sofrimento (samudaya), a verdade da cessação do sofrimento (nirodha) e a verdade do caminho que leva à cessação do sofrimento (magga). Essas verdades enfatizam a importância de reconhecer o sofrimento como uma parte inescapável da existência humana e de entender suas causas profundas, que estão frequentemente enraizadas no desejo e na ignorância.

A primeira nobre verdade, a verdade do sofrimento, nos convida a reconhecer que a vida é permeada por diversas formas de sofrimento, sejam elas físicas ou emocionais. Esse reconhecimento é um passo crucial para abandonar as fantasias que criamos para escapar dessa realidade. Como Weil argumenta, muitas vezes nos refugiamos em ilusões para evitar confrontar a verdade desconfortável de nossas vidas. O budismo, ao contrário, nos encoraja a enfrentar essa verdade de frente.

O Nobre Caminho Óctuplo como Guia Ético

O Nobre Caminho Óctuplo oferece um guia prático e ético para alcançar a cessação do sofrimento. Ele inclui o entendimento correto, a intenção correta, a fala correta, a ação correta, o modo de vida correto, o esforço correto, a atenção plena correta e a concentração correta. Esses elementos não apenas promovem uma vida ética, mas também ajudam a desenvolver uma percepção clara e verdadeira da realidade.

Por exemplo, a atenção plena correta (sati) e a concentração correta (samadhi) são práticas que cultivam a consciência presente e a clareza mental. Elas nos ajudam a ver as coisas como realmente são, sem as distorções criadas por nossas esperanças e medos. Pierre Weil sugere que muitas das nossas dificuldades surgem da recusa em aceitar a realidade e da insistência em viver em um mundo de fantasias. As práticas budistas de meditação e atenção plena são antídotos poderosos para essa tendência.

O Radical Reconhecimento do Espírito Humano

O budismo também oferece uma perspectiva radical sobre o reconhecimento do espírito humano. Ele ensina que todos os seres possuem a natureza de Buda, ou seja, a capacidade inata de alcançar a iluminação e a compreensão profunda da verdade. Esse ensinamento contrasta com a visão pessimista de que estamos irrevogavelmente presos a ilusões e fantasias.

Através da prática e do desenvolvimento espiritual, o budismo acredita que podemos transcender nossas limitações e ilusões. Esse processo envolve um reconhecimento honesto de nossos próprios pensamentos e emoções, bem como das influências externas que moldam nossa percepção da realidade. A prática da meditação, em particular, é vista como uma ferramenta essencial para esse autoconhecimento e para o desenvolvimento de uma visão clara e verdadeira.

O Budismo como Manifesto Contra a Inverdade

Em última análise, o budismo pode ser visto como um manifesto contra a vontade de inverdade. Ele nos desafia a abandonar as ilusões que criamos para nos proteger do sofrimento e a aceitar a realidade em sua totalidade. Esse reconhecimento da verdade é visto não apenas como uma necessidade ética, mas também como um caminho para a libertação espiritual.

Pierre Weil destaca que muitas vezes nos apegamos a fantasias e inverdades porque elas nos oferecem um conforto temporário. No entanto, esse conforto é ilusório e nos afasta de uma compreensão mais profunda e verdadeira da vida. O budismo, ao enfatizar a importância do reconhecimento da verdade, oferece uma alternativa poderosa a essa tendência.

Conclusão

Em síntese, a filosofia de Schopenhauer sobre a vontade e a análise de Pierre Weil sobre a vontade de inverdade revelam uma visão complexa e interligada da condição humana. Schopenhauer nos mostra que a vontade irracional é a fonte de nosso sofrimento, enquanto Weil destaca como as fantasias sustentadas pela vontade de inverdade moldam nossa percepção e comportamento. A vontade de inverdade, embora ilusória, em alguma medida é essencial para a estrutura psíquica e social humana, permitindo-nos viver em um mundo de fantasias que satisfazem nossas necessidades psicológicas e emocionais. A psicanálise e a filosofia nos ajudam a entender esses processos, revelando a complexidade da mente humana e a maneira como as verdades subjetivas moldam nossas vidas e sociedades.

A conclusão é, nesse contexto, que se entende a visão sombria sobre a humanidade como apresentada. A filosofia de Schopenhauer, ao destacar a irracionalidade da vontade como força motriz do mundo, e a análise de Pierre Weil sobre a vontade de inverdade, revelam uma profunda insatisfação com a condição humana e suas ilusões. Schopenhauer vê a existência humana como permeada por sofrimento incessante, e Weil destaca a tendência das pessoas em criar e se agarrar a fantasias que mascaram a dura realidade.

Em função disso, em nossa opinião a humanidade é tosca, bárbara e animalesca reflete a visão de que os seres humanos, em sua maioria, estão presos a esses ciclos de ilusões e vontades irracionais. Essas características são vistas como intrínsecas à natureza humana, que busca incessantemente o prazer imediato e a evitação do sofrimento, muitas vezes a qualquer custo, mesmo que isso implique em viver em um mundo de falsidades, autoenganos e sofrimento alheio.

A cultura popular, frequentemente criticada como superficial e enganadora, em nosso entendimento, é vista como uma manifestação dessa vontade de inverdade. As produções culturais, na sua maioria, podem ser entendidas como formas de entretenimento que servem para distrair e confortar as massas, oferecendo uma fuga temporária da realidade difícil e, muitas vezes, dolorosa.

Portanto, defendemos que a humanidade é ignorante, animalesca, dupla, tripla e que a cultura popular é um "grande embuste" e, portanto, reflete a nossa desilusão com a capacidade humana de enfrentar a verdade de forma direta e honesta. Nesse contexto, todo empreendimento humano, humanizador e ético – sobretudo quando ganha expressão cultural – reflete a atitude cínica, hipócrita e inescrupulosa em alguma medida e, em vista disso, não há avanço moral ou ético na humanidade e, assim, todos os tempos são sempre expressão das mesmas contradições, dilemas, interesses e problemas (em graus variados e numa, portanto, nova roupagem). Em nossa opinião não há amor, verdade e justiça nesse mundo. Contudo, as coisas precisam ser narradas como se houvesse visto que do contrário a melancolia, a depressão e a morte reinariam. O problema da Verdade, portanto, tão longamente perseguida pela filosofia encontra no mundo sua impossibilidade.

 

Referências:

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