A lógica subjacente à ordem do discurso cínico consoante às mazelas biopsicossociais

 

A ordem do discurso cínico:

A lógica subjacente à ordem do discurso cínico consoante às mazelas biopsicossociais

 

Thiago Carvalho de Souza

06 de agosto de 2024

 

Introdução

 

Como nossa temática é fundamental, consiste em delinear de modo muito particular o cinismo, tornando-o um objeto de estudo contemporâneo capaz de explicar a mentira, o erro, a ilusão, a exploração, as contradições psicossociais e outras formas de alienação e causas do sofrimento. Parece bastante importante começar de modo súbito, antes de apresentar o problema das fantasias, o problema do princípio do prazer, o conceito de vontade em Schopenhauer ou o conceito de sujeito transcendental em Kant, ou mesmo as questões de linguagem ligadas à dinâmica psicossocial. Sugiro que falemos resumidamente sobre os diversos modos de definição e tratamento epistemológico do cinismo.

 

O cinismo, ao longo da história, assumiu diferentes formas e interpretações. Suas definições variam conforme o contexto filosófico e cultural em que são inseridas. Abaixo estão cinco definições amplas do cinismo, baseadas em pensadores como Nietzsche, Sloterdijk e Vladimir Safatle.

 

1. Cinismo Clássico:

O cinismo tem suas raízes na Grécia Antiga com Diógenes de Sinope, que defendia uma vida simples e em harmonia com a natureza, desprezando convenções sociais e valores materiais. Para Diógenes e seus seguidores, o cinismo era um meio de alcançar a autossuficiência e a liberdade individual, vivendo de maneira austera e sincera.

 

2. Cinismo Moderno (Nietzsche):

Friedrich Nietzsche via o cinismo como uma reação crítica à decadência moral e intelectual da sociedade. Em suas obras, Nietzsche descreve o cinismo como uma forma de desmascarar a hipocrisia e os valores ilusórios promovidos pela cultura ocidental. Para ele, o cínico é aquele que vê através das máscaras sociais e expõe a verdade nua e crua, muitas vezes de maneira provocativa e iconoclasta.

 

3. Cinismo como Ressentimento (Safatle):

Vladimir Safatle, filósofo contemporâneo brasileiro, interpreta o cinismo como uma manifestação de ressentimento e descrença nas estruturas sociais e políticas. Segundo Safatle, o cinismo moderno é uma resposta à sensação de impotência frente à corrupção e à injustiça, caracterizado por uma atitude de desdém e ironia em relação às instituições e aos valores estabelecidos.

 

4. Cinismo da Era Moderna (Sloterdijk):

Peter Sloterdijk, filósofo alemão, argumenta que o cinismo na era moderna é uma forma de "razão cínica", onde os indivíduos reconhecem a falsidade das ideologias dominantes, mas continuam a agir como se acreditassem nelas. Sloterdijk vê o cinismo contemporâneo como uma postura pragmática e desiludida, que aceita a duplicidade moral como inevitável na vida moderna.

 

5. Cinismo como Crítica Social:

De maneira geral, o cinismo pode ser entendido como uma forma de crítica social que desafia as normas e os valores convencionais. Essa perspectiva critica a superficialidade e a falsidade das interações humanas, promovendo uma visão mais autêntica e honesta da vida. O cinismo, nesse sentido, é uma ferramenta para questionar e desconstruir as estruturas de poder e as pretensões morais da sociedade.

 

 

Minha compreensão do cinismo parte de uma conjuntura que incorpora fortemente as referências de Nietzsche, Safatle e Sloterdijk. Para mim, assim como para Nietzsche, o cinismo é uma forma de crítica social que denuncia a hipocrisia e todas as formas de opressão. No entanto, ao alinhar-me com Safatle, também vejo no cinismo uma expressão de desilusão e ressentimento em relação às instituições. De forma abrangente, o cinismo denuncia a ambivalência moral.

 

Essa visão é distinta do cinismo como crítica social promovida pela Escola de Frankfurt. Para mim, o cinismo expressa um descontentamento particular ou social que pode ou não conter um tom crítico. Ele se refere a uma forma de lidar existencialmente com a vida humana, sem visar, em sua origem, a expressão de uma crítica teórica ou a busca pela construção de espaços autênticos, elevação da dignidade humana ou atenuação do sofrimento. O cinismo, conforme o entendo, não é uma corrente ideológica ou doutrinária, mas um modus operandi e modus vivendi do homem comum ou contemporâneo.

 

Por "homem comum", refiro-me àquele que não está suficientemente esclarecido, não possui preocupações existenciais marcantes nem compromissos com a honestidade ou a verdade. Este homem orienta-se por uma abordagem prática, pragmática e utilitária, na qual todos os parâmetros éticos e valores elevados que ele próprio afirma, ele mesmo não pode contestar, rompendo com a lógica, o princípio da conservação e o bom senso. Assim, joga um jogo duplo, permitindo-se uma posição inferior, tornando-se animalesco, insensível, grotesco, rude e, no limite, cruel, desde que possa usufruir de certas vantagens ou proteger-se contra desvantagens.

 

Procuro explicar a origem desse problema nas fantasias e no princípio do prazer, demonstrando que existem opções viáveis para a verdade através do sujeito acidental kantiano e outros dispositivos culturais acessíveis e de fácil compreensão. Esses elementos, muitas vezes contestados em favor de atitudes caprichosas, são essenciais para enfrentar o problema da civilização, que o cinismo, como aqui discutido, implica na ausência de civilização.

 

Não se trata de uma questão de superestrutura que determina uma infraestrutura, onde os indivíduos são totalmente limitados. Não estamos falando de uma imposição vertical pura, mas de uma adesão horizontal do humano consigo mesmo. Trata-se, portanto, de uma recusa ao pensamento, à verdade, à moralidade e à ética. Tudo o que é fundamental, necessário, bom e justo só existe em contratos comerciais que contenham sanções econômicas. Não há compromisso ou responsabilidade para com as coisas que são necessárias. Todos os valores fundamentais são efetivados apenas através de contratos comerciais.

 

Nesse contexto, o cinismo está na mesma seara do niilismo e, portanto, da morte de Deus proclamada por Nietzsche, ou seja, a morte de todos os valores superiores, representando uma espécie de ateísmo velado que se capilariza cada dia mais pela sociedade, inclusive nas mais religiosamente fervorosas. A sociedade pode ser religiosa, mas esta religiosidade é, frequentemente, uma adesão a rituais vazios e compromissos formais que fazem parte do teatro social. Isso não significa que os indivíduos religiosos ou cidadãos estejam intimamente comprometidos com aquilo que professam publicamente.

 

Nesse sentido, o cinismo que expresso tenta explorar de modo mais profundo e concreto aquilo que está mais presente no cotidiano. Não se trata apenas da contradição entre comportamento e discurso, mas marca um distanciamento das pessoas em relação à ordem cívica, à vida comum e àquilo que conhecemos como res publica, ou seja, a coisa pública.

 

Para que o cinismo seja bem compreendido em seu sentido amplo, é necessário revisitar diversas dimensões do ser: a biológica, a social e a psicológica. Pela dimensão biológica, estamos, de algum modo, tratando da psicanálise, uma vez que esta tem uma forte fundamentação biológica, já que Freud era neurologista e seu modelo possui um substrato biológico. Pela dimensão social, referimo-nos ainda à psicologia, pois não existe psicologia individual sem uma psicologia social, dado que o homem se relaciona no campo dos interesses particulares e das motivações, que envolvem o poder, o status quo, o econômico, o mundo da aparência e o social no sentido mais concreto.

 

O biopsicossocial refere-se a autores como Schopenhauer, Freud e Pierre Weil, e à linguagem. Cada um deles, dependendo do modo como são organizados, permite construir uma lente para ver aquilo que não é possível a olho nu sem o devido tratamento conceitual. Isso é uma tentativa de descrever como as pessoas, as instituições e a ordem social funcionam e como isso é um entrave aos problemas filosóficos fundamentais, como o problema do mal, da justiça, da verdade e da ilusão metafísica.

 

A ilusão metafísica funciona como uma viseira ou um anteparo voluntário que obstrui a visão do que está em questão, em favor de interesses que destituem o valor do que está em discussão. Por exemplo, uma pessoa pode ser bem ou mal estimada não pelo que ela é, mas pelo modo como é percebida socialmente e pelo valor que lhe é atribuído externamente. Esse valor social pode superestimá-la ou subestimá-la, e dependendo de como ela é tratada pelos outros, pode incorrer em sofrimento, mal-estar, adoecimento e até morte. Tudo isso, no limite, por conta de práticas e interesses ideológicos negativos, orientados por uma cosmovisão cínica do mundo.

 

Consoante à verdade, parece-me que, em um mundo cuja cosmovisão difundida é cínica, há uma total refratariedade à verdade. Mesmo que a verdade exista e seja evidente, comprovada cientificamente, filosoficamente ou por qualquer outro meio, desde que essa proposição verdadeira contraste com certos interesses e práticas, ela não será aderida. Portanto, o problema da verdade, nesse entendimento que trago, é um problema biopsicossocial. A verdade não pode ser resolvida apenas por meio da lógica, metafísica ou ontologia. Não se trata aqui do rigor lógico de um autor ou disciplina, mas sim da abertura do corpo social e das instituições à verdade. Caso contrário, haverá um conjunto de dispositivos biopsicossociais que irão deslocar essa verdade para um lugar que não é o seu, produzindo censura, exclusão e silenciamento.

 

Consoante ao privilégio da justiça, minha visão é de que a justiça não é uma entidade metafísica; ela não existe além da nossa sociedade ou da nossa razão, nem é transcendental. A justiça nasce da injustiça, que, por sua vez, surge da exploração, da opressão, do não reconhecimento do valor humano, ou seja, da não validação dos direitos humanos e do sofrimento. O sofrimento aponta para uma injustiça, e esta requer, através da nossa racionalidade, uma compreensão do que seria a justiça. A justiça, então, torna-se um campo de pesquisa e ação prática, no sentido de que uma sociedade mais sensata, mais próxima da civilização, tenderia a se orientar por uma correção, por uma espécie de ajuste, rumo à efetivação ou corporificação da justiça. Isso não porque a justiça exista a priori, fora de nós, como um dado metasensorial, mas porque ela é construída a partir do esforço humano.

 

Nesse contexto, minha abordagem do problema do cinismo é transversal. Ela é diagonal, abarcando elementos verticais e horizontais, abrangendo tanto questões das instituições quanto dos particulares entre si mesmos. Dessa forma, trago uma visão de uma filosofia política. Este texto trata de problemas filosóficos relacionados à linguagem, metafísica e filosofia política, sobretudo a filosofia política de Thomas Hobbes. Para Hobbes, a vida social é uma luta de todos contra todos, velada ou contida através de contratos sociais, do poder instituído pelo Estado, ou mesmo a partir de normas religiosas e morais. Parâmetros linguísticos também podem mascarar ou ofuscar a realidade, pois, se esta fosse expressa de maneira nua, poderia causar um mal-estar coletivo capaz de colapsar o tecido social.

 

Fantasias em Pierre Weil

 

As inúmeras referências a um local não existente de bem-aventurança

 

O humano caminha a procura de algo que não experimentou e, porém, deseja. Em função desse fato, inúmeros autores, grandes mestres, chegam a conclusão do tipo: ou procuramos o que tivemos acesso no outro mundo, ao estilo platônico; ou ao que experimentamos na gestação. De fato, diversas religiões, mitologias e contos, assim como comportamento, parecem apontar para uma realidade anterior no tempo e, ademais, na ordem do ser. 

 

A busca incessante do ser humano por algo que não experimentou, mas que intensamente deseja, permeia as reflexões de inúmeros autores e grandes mestres ao longo da história. Essa inquietação profunda leva a diversas conclusões, algumas das quais remontam a ideias platônicas, sugerindo que buscamos na atualidade aquilo a que tivemos acesso em um "outro mundo". Outras correntes de pensamento sugerem que nossa busca está enraizada nas experiências da gestação, um período misterioso que precede nossa entrada neste mundo.

 

O filósofo grego Platão, em suas obras, especialmente em "A República", introduz a teoria das Ideias, propondo que a realidade sensível que percebemos é apenas uma sombra das formas perfeitas e eternas que existem em um plano transcendental. Assim, a busca do ser humano seria uma tentativa de recuperar aquilo que conhecemos em um estado anterior, uma realidade mais autêntica e pura. Essa perspectiva lança luz sobre a natureza da busca humana, sugerindo que estamos constantemente em busca de algo que conhecemos em um estado prévio de existência.

 

No contexto das religiões e mitologias, encontramos narrativas que corroboram essa ideia. A mitologia grega, por exemplo, traz a história de Orfeu, que em sua busca por Eurídice no submundo busca resgatar algo que foi perdido. De maneira semelhante, o mito do Jardim do Éden na tradição judaico-cristã sugere uma condição anterior à queda, onde a humanidade experimentava uma harmonia perdida. Esses relatos mitológicos refletem a busca constante por algo que transcende a experiência atual.

 

Na esfera psicológica, a teoria de Carl Jung sobre o inconsciente coletivo lança luz sobre a ideia de que há imagens e símbolos profundamente enraizados na psique humana, provenientes de experiências arquetípicas compartilhadas ao longo da evolução. Esses arquétipos, como o símbolo da mãe, podem remontar à experiência primordial da gestação, sugerindo que nossa busca está enraizada nas profundezas do inconsciente coletivo.

 

A obra "O Livro Vermelho", de Carl Jung, é uma exploração fascinante desses temas, onde o autor mergulha em seu próprio inconsciente para compreender os símbolos e imagens que moldam a psique humana. Jung, ao abordar a busca do ser humano, destaca a importância de reconhecer e integrar esses aspectos arquetípicos para alcançar uma compreensão mais profunda da existência.

 

A relação entre a busca humana e a gestação também encontra eco em obras como "A Origem da Tragédia", de Friedrich Nietzsche, onde o autor explora a dualidade apolínea e dionisíaca como forças fundamentais na experiência humana. A gestação, com sua mistura de criação e destruição, pode ser vista como uma metáfora para essas forças opostas que moldam nossa existência.

 

Ao refletir sobre a busca humana por algo além da experiência presente, é crucial considerar a obra do antropólogo Mircea Eliade, especialmente "O Sagrado e o Profano". Eliade explora a ideia de que as sociedades humanas buscam constantemente reconectar-se com um tempo mítico primordial, onde a sacralidade permeia a realidade cotidiana. Essa busca por transcendência e retorno a uma realidade primordial pode ser interpretada como uma expressão da busca humana por algo que foi experimentado em um estado prévio de existência.

 

A fantasia do paraíso perdido

 

O retorno ao êxtase

 

Praticamente todos os povos têm alguma menção a algum período anterior – em um tempo mítico - do qual as coisas se deram, assim como do qual fundamentam sua vida. Por exemplo, os hebreus fizeram menção a um período adâmico. Nele a humanidade se reduzia a uns poucos – Adão e Eva. Nesse período, anterior ao pecado, a vida era marcada por um poderoso senso de preenchimento e plenitude. Os gregos antigos falavam em homens da era de ouro, assim como nos hiperbóreos. Nesse contexto, importa-nos pensar que no plano da vida individual ou, ainda, social, os homens sempre fizeram menção ao passado como, geralmente, local de origem, purê e retorno. Nesse horizonte de contextualização é que iremos agora pensar no que consiste o mito do paraíso perdido através de uma chave de leitura psicanalista.  

 

Pierre Weil (19... - 20...) irá mostrar que o humano se caracteriza, mesmo no comportamento mais simplório e banal do cotidiano, por uma incessante procura da felicidade, da alegria, de viver e de paz, assim como, para atingir esse horizonte, procura o prazer e foge da dor. Através dessa atitude, atrelado às mitologias, sistemas e religiões que nos mostram e prometem o estado de bem-aventurança, está situado o enraizamento na memória de um estado de plenitude e de êxtase permanente de onde se retira tal desejo. 

 

Nos situamos, pois, como se tivéssemos uma lei inscrita no âmago de nosso ser: somos feitos para a alegria e não para o sofrimento.  

 

Retornamos ao êxtase quando procuramos sensações agradáveis de toda natureza: ver e contemplar a paisagem, a beleza da arquitetura, a harmonia da matemática, o conhecimento científico, o sabor das frutas e demais iguarias; assim como nas trocas das carícias sexuais: o escoar a mão pelo corpo, o beijo, o beijar os seios, a penetração; assim como o cheiro do perfume das rosas; o riso expresso em nós ao ver um bebê fofinho rir, assim como na pura e simples (e rara) busca pelo amor amante frente ao convívio. Além da procura – em alguns – incessante por conhecimento, pela pesquisa, pela publicação, pela experimentação científica. 

 

Apesar desse permanente impulso humano à felicidade, há inúmeros obstáculos no qual a grande maioria se perde. Primeiro, pois nenhuma dos prazeres duram para  além de seu ato. Não havendo permanência de estados mentais, rapidamente o prazer se vai – e ficamos ou com o tédio, ou com o sofrimento ou, ainda, na posição de quem carece do retorno ao prazer perdido e, como cada ato é descontínuo, ainda que haja condições materiais de se manter indefinidamente no prazer, uma hora temos de voltar a rotina e, assim, a festa acaba. 

 

O que é algo paradoxal e dramático, pois feito para a felicidade, o homem, no entanto, experimenta mais a infelicidade.  

 

Apesar de nossa insatisfação, podemos – mesmo que provisoriamente, através, por exemplo, de bolhas psicossociais – ocultar tal insatisfação. Uma vida que já não tem necessidades vitais em carência e, pois, suprimiu tais necessidades, algo demasiadamente comum em sociedades desenvolvidas, podemos suprimir a insatisfação através do luxo, do mimo, da moda e, enfim, de inúmeras futilidades. Elas são, em nossa época, por conta de sua capacidade de suspender a insatisfação, expressões de riqueza e leveza. A partir disso Pierre Weil (19...) diz: “..esta satisfação é transitória e é justamente o caráter de impermanência do prazer a ela ligado, que provoca um apego à memória do prazer cujo caráter fantasmático abastece a natureza do desejo”. Ou seja, agora falando rapidamente em desejo, o que direciona e organiza a lógica do desejo é, primeiro, a impermanência, visto que ela ativa a memória a armazenar imagens mentais sobre o objeto prazeroso; em segundo lugar, ao fixar o objeto prazeroso, dá ao desejo seu objeto. Nesse contexto, o desejo deseja aquilo que dá prazer. Sendo este a dimensão fisiológica do querer ou desejar.  

 

Não obstante, para além da possibilidade de episodicamente suspendermos o caráter da insatisfação frente às coisas, em algum momento nos damos conta – ainda que brevemente – do que está acontecendo. Através disso, compreendemos que nossa condição é a de quem está numa posição existencial marcada por uma oscilação mais ou menos regular entre prazer-desprazer, ou ainda, satisfação-insatisfação. Portanto, que a felicidade permanente não se encontra. Não temos acesso a mesma num no vestir, no alimentar-se, na segurança, no poder, no conhecimento, no encontro erótico, na embriaguez da juventude. 

 

“Nosso sistema sócio-econômico de consumo exagerado de segurança, de sensações e de poder, embora tenha diminuído em grande parte a miséria da insuficiência de satisfação de necessidades vitais, não forneceu a felicidade que os regimes políticos nos prometeram, sobretudo caso daqueles que já atingiram o nível de conforto de um rei ou de um imperador, como existiam antigamente, e em nome do qual foram feitas e continuam a serem feitas revoluções sangrentas Pierre Weill (WEIL, 19…)”

 

Não queremos através disso negar a importância dos recursos econômicos. Importa-nos pontuar que paralelamente seja necessário mostrar de modo integral (não parcial) como repensar o problema da felicidade, bem-estar para além do ciclo vicioso da insatisfação e, portanto, melhor lidar com a nossa negatividade. Negatividade essa expressa em Weil através da metáfora do “paraíso perdido” (homônimo de John Milton). 

 

O que consiste em tudo isso?

 

Para compreender o conceito de fantasia segundo Pierre Weil, devemos entendê-la como uma crença ingênua na realidade aparente, ou seja, um baixo índice perceptivo do que realmente é. Weil descreve o psiquismo operando através de ficções mentais e ilusões psicossociais que, no entanto, têm capacidade de operar no mundo real. Podemos pensar nessas fantasias como software autoprogramáveis, ou seja, programas psicossociais que se formam espontaneamente, sem um programador externo.

 

Todos os sistemas interpretativos seriam autoformações ou, ainda, programas psicossociais (ou software psicossociais). A neurose do paraíso perdido descrita por Weil está intimamente relacionada com a vontade de inverdade, uma questão elucidada ao final.

 

Como toda neurose, na perspectiva psicanalítica, a neurose do paraíso perdido tem sua origem na infância. Weil procura explicar, com base em Freud, a origem etiológica tripla das neuroses, que têm fatores biológicos, filogenéticos e psicológicos.

 

No âmbito biológico, a união do feto com sua mãe durante a gestação é uma das fontes da neurose, pois o útero é geralmente o local mais seguro e confortável para um organismo. A separação da mãe, esse primeiro vínculo, é traumática e nos predispõe a procurar novamente esse "paraíso". A busca pelo paraíso perdido, portanto, seria uma expressão de uma memória profunda.

 

No âmbito filogenético, a neurose se relaciona com traços, engramas ou memórias desse passado longínquo da humanidade, acessados através de sessões de regressão, hipnose, etc. Em um segundo momento, a neurose se relaciona com os traços deixados pela memória coletiva – religiões, mitos, costumes, histórias, linguagem.

 

No âmbito psicológico, a neurose do paraíso perdido é pensada como um conflito egóico entre as demandas de prazer do Id e as de dever do Superego. O Ego procura, frente à realidade do mundo exterior, atender a várias demandas, especialmente as pulsionais, que exigem prazer. Dependendo do contexto, esse conflito pode instalar uma neurose, ou seja, uma instabilidade psicossocial.

 

Segundo Weil, esses fatores são suficientes, com base em diversos estudos transculturais, para mostrar que todos os povos têm uma demanda estrutural por retorno ao tal paraíso perdido. No budismo, por exemplo, isso é conhecido como Nirvana. Assim, todos os povos e, portanto, todas as pessoas, têm uma neurose/fantasia de alcançar um lugar ou estado no qual possam viver de modo pleno, isento de males e contradições, e embebedado pelo êxtase divino.

 

Weil sugere que a busca pela felicidade e por sensações agradáveis de todos os tipos – ver e contemplar formas humanas, o corpo humano, cenas agradáveis do cinema, saborear iguarias deliciosas, trocar carícias sensuais, o orgasmo, cantar ou ouvir música, sentir o perfume das flores e o cheiro do corpo feminino (no caso dos homens) – assim como a busca pelo amor genuíno, a curiosidade intelectual e o gosto pela pesquisa, são modos de procura por acessar essa dimensão secreta do ser, esse "paraíso" perdido.

 

A partir disso, fica claro por que a humanidade se orienta pelo princípio do prazer tanto quanto possível e é tão afinada à vontade de inverdade (minha alcunha). É justamente essa vontade de inverdade – expressa nas três fantasias fundamentais do humano: a fantasia do sujeito (crença na existência real de um Ego), a fantasia do objeto (crença de que os objetos são realmente como nos parecem ser) e a fantasia da relação de objeto (crença na separatividade do sujeito-objeto e dos demais objetos entre si) – que viabiliza a manutenção das fantasias psicossociais ligadas aos erros lógicos, metafísicos e psicológicos, bem como ao princípio do prazer.

 

A Fantasia da Separatividade e suas Ramificações

 

Weil sugere que existe uma fantasia de separatividade do humano, que ele busca recompor. Essa fantasia seria secundária a três outras primárias: a fantasia do sujeito, que nos faz crer na existência real de um Ego; a fantasia do objeto, que consiste na crença de que os objetos à nossa vista e mão são realmente como nos parecem ser; e a fantasia da relação de objeto, que nos induz a crer na separatividade do sujeito-objeto e dos demais objetos entre si. Essas fantasias criam uma percepção ilusória da realidade, sustentando o que Weil chama de "neurose do paraíso perdido".

 

Para compreendermos melhor essas fantasias, podemos usar a noção de complexidade de Edgar Morin. Morin argumenta que a realidade é composta por múltiplos níveis e dimensões que se inter-relacionam de maneira complexa e inseparável. Assim, as fantasias descritas por Weil são parte de um sistema complexo de crenças e percepções que moldam nossas ações e interações sociais.

 

Em minha opinião, a filosofia budista também oferece uma perspectiva valiosa ao considerar essas fantasias como formas de ignorância (avidya), que nos mantêm presos ao ciclo de sofrimento (samsara). O budismo ensina que a verdadeira natureza da realidade é interdependente e impermanente, e que nossas percepções de separatividade e ego são ilusórias.

 

O Jogo de Vida e Morte

 

Sumariamente, o jogo de vida e morte consiste numa disputa velada entre os homens, assim como num acordo subliminar e social, no estabelecimento de regras e posições sociais – ou seja, hierarquias e diferenças – que viabilizam essa procura pelo paraíso perdido tradicionalmente radicado no poder, no dinheiro e no prazer. Examinar a luta pelo poder, a avareza e a cobiça humana revela como esses impulsos estão enraizados na vontade de inverdade, isto é, na Vontade (schopenhaueriana) mesma: na essência cosmopsicológica do mundo.

 

A Luta pelo Poder

 

A busca pelo poder é um dos principais motores da ação humana, refletindo a vontade de inverdade ao criar e sustentar hierarquias sociais e políticas. A hierarquia militar e de Estado exemplifica isso, onde a estrutura de poder é rigidamente mantida e defendida. Um exemplo contemporâneo é o regime de Kim Jong-un na Coreia do Norte, onde o poder absoluto é mantido através da força, repressão e controle da informação, sustentando uma fantasia de separatividade e superioridade.

 

A Procura Universal por Prazer

 

A busca universal pelo prazer se manifesta em diversas formas, todas ligadas ao princípio do prazer, a Vontade e à fantasia de inverdade. Essa procura é evidente em comportamentos como a prostituição, relações extraconjugais, consumo de pornografia e outros atos que buscam gratificação imediata. Esses comportamentos refletem a tentativa de acessar um "paraíso perdido" de satisfação contínua.

 

Freud e princípio do prazer

 

A psicanálise, desde sua origem, tem se destacado por sua capacidade de investigar o que o ser humano obscurece ou não expressa diretamente, mas inevitavelmente revela através de suas ações e comportamentos. Essa abordagem pode ser comparada ao olhar de um caçador atento aos movimentos de sua presa. A psicanálise examina a mente humana sob múltiplos ângulos, focando em aspectos como a neurose, que se revela não apenas como uma psicopatologia, mas também como um estudo dos movimentos lógico-psicológicos que condicionam não apenas a neurose, mas também o erro de julgamento.

 

Antes de aprofundar na psicanálise, é essencial definir e contextualizar o conceito de vontade de inverdade. Em termos sumários, a vontade de inverdade pode ser vista como o correlato e contraponto à vontade de verdade, um conceito criticado por Nietzsche. A vontade de verdade, na visão nietzschiana, é a busca incessante pelo conhecimento objetivo e pelas "verdades" do mundo, frequentemente em detrimento das experiências subjetivas e instintivas. Essa vontade de verdade tem uma correspondência com o princípio de realidade de Freud, que se refere à adaptação e resposta realista às demandas do mundo externo.

 

Por outro lado, a vontade de inverdade pode ser entendida como análoga ao princípio do prazer em Freud. O princípio do prazer refere-se ao desejo inato de busca pelo prazer imediato e evitação de qualquer forma de desconforto. Ele está associado às pulsões e aos impulsos instintivos presentes no inconsciente e busca a gratificação instantânea dos desejos e necessidades, sem considerar as consequências ou a viabilidade realista dessas ações. Esse princípio opera através do processo primário do pensamento, que é ilógico, não linear e não cronológico.

 

Contrastando com isso, o princípio da realidade é um princípio adaptativo que surge com o desenvolvimento psicológico. Ele representa a compreensão gradual da realidade externa e das limitações impostas pelo mundo ao nosso redor. O princípio da realidade busca adiar a gratificação, levando em conta as restrições do ambiente, a necessidade de planejamento e a tomada de decisões ponderadas. Este princípio é guiado pelo processo secundário do pensamento, que é lógico, linear e orientado para a realidade (a qual, a título de passagem, corresponde ao Sistema 1 de Kahneman, ou seja, ao pensamento lento).

 

A fundamentação dos princípios do prazer e da realidade pode ser entendida através da tópica e do modelo econômico propostos por Freud. A tópica refere-se à estrutura da mente, dividida em três instâncias: o id, o ego e o superego. O id é a parte mais primitiva e governada pelo princípio do prazer, representando os impulsos e desejos irracionais. O ego é responsável por mediar entre o id e o mundo externo, buscando atender às demandas do id de forma realista e adaptativa, seguindo o princípio da realidade. Por fim, o superego representa a internalização das normas e valores sociais, que impõem restrições e influenciam as escolhas do ego.

 

No modelo econômico, Freud utiliza uma analogia com um sistema de energia. Ele sugere que a mente possui uma quantidade limitada de energia psíquica, chamada de "carga libidinal". Essa energia é distribuída entre diferentes processos mentais e é constantemente mobilizada e transformada. O princípio do prazer busca descarregar essa energia de forma imediata, enquanto o princípio da realidade visa gerenciar e distribuir essa energia de maneira eficiente, levando em conta as demandas externas e internas.

 

A vontade de inverdade, portanto, pode ser vista como uma inclinação a ignorar a realidade em favor do prazer imediato. Essa dinâmica é observada na formação de neuroses e outras psicopatologias, onde o indivíduo pode negar aspectos da realidade que são dolorosos ou desconfortáveis ou insatisfatórios, preferindo uma visão distorcida que oferece alívio temporário. No entanto, essa negação da realidade frequentemente resulta em conflitos internos e sofrimento, uma vez que a energia psíquica é mal gerida e as demandas do id não são equilibradas de forma adequada pelo ego.

 

A psicanálise investiga esses processos para entender como o sujeito organiza e unifica suas experiências. A partir da compreensão de Freud sobre a mente humana, podemos ver como a verdade emerge no horizonte do sujeito.

 

Nesse contexto, destaca-se que que há uma comunhão entre a noção de Vontade schopenhaueriana, vontade de inverdade, segundo este meu conceito, e princípio do prazer em Freud.

 

Schopenhauer e Kant e o sujeito transcendental

 

Após discutirmos as fantasias e o princípio do prazer, ou mesmo a vontade segundo Schopenhauer, abordaremos rapidamente Schopenhauer e Kant, destacando a possibilidade de a verdade ser apreendida pela razão. Isso se relaciona com o que Freud, de certa forma, denomina princípio da realidade, através do exame lógico da formação do sujeito transcendental. Em termos simples, isso se refere às condições prévias ou a priori que possibilitam qualquer representação mental.

 

Assim, em Schopenhauer e Kant, sem a unidade do sujeito, não seria possível ter consciência, lógica, gramática ou qualquer representação do mundo. O princípio da razão suficiente e a causalidade são fundamentais nesse contexto, pois sem eles não poderíamos chegar a algo como a verdade ou mesmo a mentira. A verdade, portanto, é uma construção que se baseia no sujeito transcendental kantiano de organizar suas percepções e experiências de forma coerente. Em resumo, o sujeito transcendental organiza a sensopercepção.

 

Schopenhauer, ao desenvolver sua filosofia, também toca nesses temas ao discutir o papel do sujeito na formação da realidade. Em "O Mundo como Vontade e Representação", ele argumenta que o mundo é percebido de duas maneiras: através da vontade e da representação. As coisas se manifestam tanto pela vontade irracional quanto pela forma como são representadas na mente do sujeito. A vontade, sendo atemporal e caótica, permeia todas as coisas e é a força motriz por trás das ações e eventos do mundo.

 

Schopenhauer destaca que a vontade não é boa nem má, mas simplesmente irracional. Essa visão contrasta fortemente com os filósofos otimistas de sua época, como Hegel, que viam a história e a realidade como um processo racional e progressivo. Schopenhauer, com seu pessimismo característico, vê a busca pela felicidade como algo fútil, pois a felicidade é apenas uma breve interrupção no constante fluxo de dor e sofrimento que caracteriza a existência.

 

A influência de Schopenhauer se estendeu além da filosofia, impactando a psicologia e a psicanálise. Freud, em particular, foi influenciado pela visão de Schopenhauer sobre os impulsos irracionais que governam o comportamento humano. A ideia de que somos movidos por forças inconscientes e irracionais é central tanto na filosofia de Schopenhauer quanto na teoria psicanalítica de Freud.

 

A unidade do sujeito, portanto, é fundamental para a formação da verdade. Sem essa unidade, não há como estabelecer um critério para a verdade ou falsidade, pois tais conceitos dependem da estrutura racional que o sujeito impõe à sua experiência. Através do estudo da psicanálise, podemos compreender melhor como a mente humana lida com a tensão entre a busca pelo prazer imediato e a necessidade de enfrentar a realidade, e como isso influencia nossa percepção da verdade e nossa capacidade de viver de maneira satisfatória e integrada.

 

Funcionamento da lógica cínica

 

Para fins de explicação do funcionamento do cinismo iremos ter de passar pela compreensão preliminar de ideologia, assim como, posteriormente, da linguagem, em sentido de demonstrar que a ideologia não é capaz de explicar o erro, a ilusão, a origem do sofrimento nem da exploração em nossa época.

 

Ideologia

 

O conceito de ideologia, segundo Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Piris Martins, e Marilene Chaui, pode ser compreendido de diversas maneiras, todas elas voltadas para a análise crítica das estruturas sociais e dos discursos que sustentam essas estruturas.

 

Para Aranha e Martins, a ideologia é um sistema de ideias que serve para explicar e justificar a realidade social. Esse sistema é composto por um saber sistemático que é ao mesmo tempo explicativo e normativo. Ele atua para manter as práticas de exploração ao fazer uso de lacunas, abstrações e universalidades. As lacunas são partes omitidas ou negligenciadas do discurso ideológico que ocultam as verdadeiras relações de poder e exploração. As abstrações generalizam e distorcem a realidade concreta, enquanto as universalidades apresentam interesses particulares como se fossem interesses universais. Desse modo, a ideologia legitima a exploração ao encobrir as relações de dominação e apresentar a ordem social como natural e imutável.

 

Acrescenta-se a essa compreensão o conceito de inversão, no qual a origem da desigualdade social é atribuída às diferenças individuais, e não à exploração da mais-valia. Essa inversão ideológica faz com que os problemas sociais sejam percebidos como falhas ou méritos pessoais, ocultando assim as causas estruturais e sistêmicas da desigualdade. Por exemplo, o sucesso ou o fracasso de um indivíduo é atribuído a sua capacidade ou incapacidade pessoal, ignorando o papel das condições socioeconômicas e das estruturas de poder na determinação dessas trajetórias.

 

Além disso, Chaui discute a ideologia como um saber instituído e instituinte. O saber instituído refere-se ao conhecimento já estabelecido, que é aceito e reproduzido pela sociedade como um todo. Esse saber naturaliza as relações de poder e dominação. Por outro lado, o saber instituinte é aquele que questiona e desafia o saber instituído, buscando revelar as contradições e as verdadeiras relações de exploração escondidas pela ideologia dominante. Esse saber é essencial para a transformação social, pois promove a consciência crítica e a ação política contra as estruturas opressivas.

 

Nesse contexto, observamos basicamente relações ilusórias e contraditórias decorrentes de uma classe dominante sobre uma classe dominada. Entretanto, o problema, conforme mencionado no primeiro parágrafo, não reside exatamente nas diferenças práticas entre essas classes. Embora essas diferenças sejam fundamentais, elas não explicam, por exemplo, por que as pessoas são maldosas ou causam sofrimento aos outros. Talvez nossa tentativa de explicação se baseie em entender o problema da crueldade, do mal e da exploração a partir de uma visão biopsicossocial.

 

Nesse sentido, é importante destacar que a falsa consciência, seja ela ideológica ou não, tornou-se um problema secundário. O problema primário é o cinismo. No cinismo, temos a falsa consciência esclarecida, ou seja, as pessoas já estão cientes da ideologia e do que estão fazendo, seja bem ou mal, atitudes antiéticas, morais ou imorais. Contudo, elas não modificam seu comportamento, justificando-se com argumentos como: "Quem sou eu para me opor ao sistema? Não fui eu que criei as regras do jogo, sou obrigado a aceitá-las." O notável nisso tudo é a indiferença com que essas questões são tratadas, sem nenhum tipo de resistência.

 

Nesse contexto, queremos apontar que tanto a ideologia quanto o cinismo dependem de elementos mais fundamentais, muitas vezes ligados à biologia. Segundo a psicanálise, busca-se resgatar o êxtase da vida intrauterina, de modo que nossos direcionamentos fundamentais quanto à satisfação estão ligados ao prazer, ao saber, ao conhecimento e ao poder. Esses traços são comuns entre as diversas classes sociais, mas há diferentes enfoques sobre essas fantasias. Para realizar essas fantasias e satisfazer seus desejos, as pessoas, individualmente, em grupo ou socialmente, muitas vezes dispõem-se a serem mal educadas, desrespeitosas, agressivas, exploradoras e manipuladoras. No fundo, o que importa não é exatamente como o sistema funciona, mas como cada um de nós se posiciona diante desse sistema. Certas condutas são mais difíceis de serem alcançadas em determinados grupos sociais, famílias ou sistemas. Por exemplo, pode ser difícil para um operário sobreletrado ou analfabeto, que vive do trabalho braçal, desenvolver certa sensibilidade, senso estético ou refinamento conceitual, embora seja possível ter discernimento conceitual sem conhecimento formal.

 

Nesse contexto, como será abordado na próxima sessão, tentaremos desvendar o mecanismo de funcionamento do cinismo a partir da linguagem. Somos orientados por fantasias, e essas fantasias nos direcionam à hostilidade, à maldade e à crueldade. O sistema, em minha opinião, é formado a partir de certos interesses derivados dessas fantasias, que podem não ter uma origem intrinsecamente maligna, mas que, para se realizarem, necessitam passar por questões malignas. Isso ocorre porque nenhuma dessas fantasias está originalmente ligada a uma fantasia moral, por exemplo, onde o indivíduo se compromete com o outro.

 

Nesse sentido, o eixo orientador da vida é sempre o "eu", que se manifesta primeiro na família, nos filhos, nos cônjuges e nos pais. Em seguida, é encarnado talvez na comunidade mais imediata, na vida religiosa e no estado. São sempre círculos maiores de corporificação do "eu", cada um com valores e interesses determinados.

 

Destina-se a proteção psicossocial:

 

O cinismo, entendido como uma falsa consciência esclarecida (Sloterdijk), pode ser analisado como uma obstrução do campo de visão ou compreensão daquilo que está à vista ou em questão, favorecendo certas conveniências pessoais, sociais, coletivas, culturais e outras. Este cinismo manifesta-se por meio de uma linguagem insincera, que distorce a realidade em prol de interesses específicos. No contexto da proteção psicossocial, o cinismo atua para manter o status quo, utilizando-se dos seguintes elementos:

 

1. Conveniências: O cinismo protege conveniências ao justificar atitudes e comportamentos que beneficiam determinados grupos ou indivíduos, mascarando suas verdadeiras intenções. Ele cria uma fachada de racionalidade e inevitabilidade, escondendo as motivações egoístas por trás de decisões que muitas vezes são prejudiciais para a coletividade.

 

2. Utilidade: A utilidade, no contexto do cinismo, refere-se ao uso pragmático da linguagem e da ideologia para alcançar objetivos específicos. A linguagem cínica manipula significados e referenciais para tornar certas práticas e políticas socialmente aceitáveis, mesmo quando são injustas ou imorais. A distorção da verdade é justificada pela suposta utilidade dessas práticas para o bem-estar social ou econômico.

 

3. Poder: O cinismo é uma ferramenta poderosa na manutenção de relações de poder. Ele desvia a atenção das verdadeiras fontes de injustiça e desigualdade, culpando indivíduos ou grupos marginalizados. Dessa forma, os detentores do poder podem continuar a explorar e oprimir sem enfrentar resistência significativa. A linguagem cínica reforça hierarquias sociais e econômicas, apresentando-as como naturais e inquestionáveis.

 

4. Linguagem: A linguagem cínica desempenha um papel crucial na articulação das conveniências, utilidades e relações de poder. Ela manipula a relação entre signo, significado e referente, escamoteando o sentido original das palavras e conceitos. Por exemplo, termos como "liberdade" e "democracia" podem ser usados para justificar políticas repressivas, enquanto a "igualdade" pode ser invocada para disfarçar a perpetuação de desigualdades estruturais.

 

A linguagem cínica, ao distorcer e manipular os significados, obstrui a compreensão clara dos fenômenos sociais e políticos. Isso cria um ambiente onde a insinceridade prevalece, e a verdade é subjugada aos interesses de quem detém o poder. A proteção psicossocial proporcionada pelo cinismo é, portanto, uma forma de manutenção do status quo, que impede a transformação social ao mascarar as verdadeiras causas dos problemas e promover a aceitação passiva das condições existentes.

 

Linguagem

 

O que é linguagem?

 

A linguagem é um fenômeno complexo e multifacetado que permeia todas as esferas da atividade humana, sendo fundamental para a comunicação, a expressão de pensamentos e emoções, e a construção de identidades culturais e sociais. Diversos autores consagrados da linguística e da semiologia contribuíram para a compreensão de suas características e partes constitutivas. Entre esses autores destacam-se Ferdinand de Saussure, Noam Chomsky, Roman Jakobson, e Charles Sanders Peirce, cujas teorias oferecem diferentes perspectivas sobre a natureza e o funcionamento da linguagem.

 

Ferdinand de Saussure e a Linguística Estrutural

 

Ferdinand de Saussure é amplamente reconhecido como o fundador da linguística moderna. Em sua obra *Curso de Linguística Geral*, ele propõe uma abordagem estruturalista para o estudo da linguagem, focando nas relações internas entre os elementos linguísticos.  Para Saussure, a unidade básica da linguagem é o signo linguístico, que consiste de duas partes: o significante (a forma sonora ou gráfica) e o significado (o conceito ou ideia). Ele introduz o conceito de arbitrariedade do signo, afirmando que não há uma relação intrínseca entre o significante e o significado; essa relação é estabelecida por convenção social. Além disso, Saussure enfatiza a importância das relações sintagmáticas (combinatórias) e paradigmáticas (substitutivas) no funcionamento da linguagem, mostrando como os signos ganham significado a partir de suas diferenças e oposições dentro do sistema linguístico.

 

Noam Chomsky e a Gramática Gerativa

 

Noam Chomsky revolucionou a linguística com sua teoria da gramática gerativa, que desloca o foco da estrutura superficial das línguas para as regras profundas que governam a produção e a compreensão das sentenças. Em seu livro *Syntactic Structures*, Chomsky introduz o conceito de competência linguística, que se refere ao conhecimento tácito que os falantes têm das regras gramaticais de sua língua.

 

Chomsky propõe que todas as línguas humanas compartilham uma estrutura subjacente comum, denominada gramática universal. Esta gramática universal é um conjunto de princípios e parâmetros inatos que configuram a aquisição da linguagem. A partir desse ponto de vista, a linguagem é vista como uma capacidade cognitiva específica do ser humano, com uma estrutura altamente organizada e regras generativas que permitem a criação de um número infinito de sentenças a partir de um conjunto finito de elementos.

 

Roman Jakobson e as Funções da Linguagem

 

Roman Jakobson, um dos principais representantes do formalismo russo e do Círculo Linguístico de Praga, contribuiu significativamente para a compreensão das funções da linguagem. Em seu ensaio *Closing Statement: Linguistics and Poetics*, Jakobson identifica seis funções principais da linguagem, cada uma associada a um elemento do ato comunicativo:

 

1. Função Referencial: Relaciona-se ao contexto e ao conteúdo informativo da mensagem.

2. Função Emotiva: Expressa atitudes, emoções e estados internos do emissor.

3. Função Conativa: Focada no receptor, busca influenciar seu comportamento ou resposta.

4. Função Fática: Destinada a estabelecer, prolongar ou interromper a comunicação, como em saudações e despedidas.

5. Função Metalinguística: Refere-se ao código em si, permitindo explicações e esclarecimentos sobre a própria linguagem.

6. Função Poética: Enfatiza a forma da mensagem, predominante na literatura e na poesia, onde a estética e a construção do texto são centrais.

 

Charles Sanders Peirce e a Semiótica

 

Charles Sanders Peirce, um dos fundadores da semiótica, amplia o estudo da linguagem para incluir todos os tipos de signos e processos de significação. Ele classifica os signos em três categorias principais:

 

1. Ícone: Um signo que se assemelha ao objeto que representa, como uma fotografia.

2. Índice: Um signo que está diretamente conectado ao seu objeto por uma relação causal ou física, como fumaça indicando fogo.

3. Símbolo: Um signo cuja relação com seu objeto é arbitrária e estabelecida por convenção, como as palavras na linguagem.

 

Para Peirce, a semiose (o processo de significação) é triádica, envolvendo um signo, um objeto e um interpretante (o conceito ou entendimento que o signo gera na mente do intérprete). Essa abordagem permite uma análise mais abrangente dos processos comunicativos, incluindo a linguagem verbal e não-verbal, e enfatiza a dinamicidade da interpretação dos signos.

 

Características e Partes da Linguagem

 

A linguagem possui várias características que a tornam única entre as formas de comunicação. Entre essas características destacam-se:

 

- Arbitrariedade: A relação entre os signos e seus significados é arbitrária e baseada em convenções sociais.

- Dualidade: A linguagem opera em dois níveis simultâneos: o nível dos sons (ou grafemas) e o nível dos significados.

- Produtividade: A capacidade de gerar um número infinito de sentenças novas a partir de um conjunto finito de regras e palavras.

- Deslocamento: A habilidade de comunicar sobre coisas que não estão presentes no tempo e no espaço.

- Culturalidade: A linguagem é transmitida culturalmente e é fundamental para a construção e manutenção das identidades culturais.

 

A linguagem é um sistema complexo e multifacetado, essencial para a comunicação humana e a construção social. Autores como Saussure, Chomsky, Jakobson e Peirce oferecem perspectivas complementares que nos ajudam a entender suas características e partes constitutivas. A partir dessas abordagens, podemos apreciar a riqueza e a diversidade da linguagem, bem como seu papel central na vida humana.

 

Como a linguagem representa a sociedade e cultura?

 

A linguagem é essencial para o entendimento e a representação da sociedade e da cultura. Ela serve como uma porta de entrada para o mundo, permitindo que os indivíduos comuniquem pensamentos, construam identidades e interajam socialmente. Para que a linguagem funcione de forma eficaz, é necessário que exista uma aceitação social das convenções linguísticas, além de uma base racional que possibilite a inteligibilidade das mensagens transmitidas. Sem essa racionalidade, a linguagem perde seu sentido, tornando-se incapaz de trazer à consciência a existência ou presença de objetos na mente humana. Nesse sentido, a linguagem tem a capacidade de fixar elementos móveis em formas estáveis de ideias, uma característica que está profundamente ligada às dinâmicas culturais e sociais.

 

A linguagem surge, então, como um elemento fundamental na possibilidade de interação entre os indivíduos e na estruturação da ordem social. Em muitos casos, ela é até mesmo confundida com a própria realidade. Isso levanta a questão de que, ao falarmos de realidade, mundo, verdade ou conhecimento, talvez estejamos, na verdade, falando sobre linguagem. À medida que a linguagem representa a sociedade e a cultura, ou que a sociedade e a cultura são apresentadas pela linguagem, percebemos que o acesso às experiências objetivas do mundo exterior só é possível por meio de uma certa linguagem que permite essa apreensão fenomenológica e mental.

 

Além disso, à medida que expandimos a linguagem sobre um objeto, aumentamos também nossa compreensão desse objeto. Por exemplo, em sociedades que possuem mais palavras para designar cores, há uma percepção mais ampla dessas cores. O mesmo acontece com comportamentos ou propriedades objetais: quanto mais palavras existem para descrevê-los, maior é nossa capacidade de compreensão e explicação desses fenômenos. Diante disso, podemos concluir que a linguagem representa a sociedade e a cultura à medida que os signos linguísticos permitem a representação mental dessa sociedade e cultura para os indivíduos que as integram. Essa relação é dinâmica, com causalidades não lineares, recursividade e múltiplas perspectivas envolvidas.

 

 

Pensamento Concreto e Pensamento Abstrato

 

A compreensão da linguagem pode ser aprimorada ao distinguir entre pensamento concreto e pensamento abstrato. O pensamento concreto está relacionado às experiências sensoriais e imediatas. Ele lida com objetos tangíveis e situações específicas, facilitando a interação direta com o ambiente. Por exemplo, ao observar uma árvore, o pensamento concreto reconhece suas características físicas, como cor, forma e textura.

 

Por outro lado, o pensamento abstrato envolve a manipulação de ideias e conceitos que não estão diretamente ligados à experiência sensorial imediata. Esse tipo de pensamento permite a generalização e a reflexão sobre questões mais amplas. Utilizando o mesmo exemplo, o pensamento abstrato sobre uma árvore pode incluir conceitos como ecologia, crescimento, e ciclo de vida, extrapolando para ideias sobre meio ambiente e sustentabilidade.

 

A linguagem desempenha um papel crucial na transição entre esses dois tipos de pensamento. Ela fornece as ferramentas necessárias para transformar experiências concretas em conceitos abstratos, permitindo a comunicação e a reflexão sobre ideias complexas e multifacetadas. Isso é fundamental para o desenvolvimento intelectual e cultural, pois permite a transmissão de conhecimentos acumulados e a construção de novas compreensões do mundo.

 

Estrutura da Linguagem e Formação da Percepção

 

A estrutura da linguagem impacta significativamente a formação da percepção individual e social. O vocabulário, os conceitos e os códigos sociais que uma língua oferece moldam a forma como os indivíduos percebem e interpretam a realidade. Essa relação entre linguagem e percepção pode ser analisada a partir de diversas perspectivas, incluindo a teoria da relatividade linguística de Benjamin Lee Whorf e Edward Sapir, que sugere que as características da língua influenciam a forma como seus falantes percebem o mundo.

 

Por exemplo, diferentes idiomas categorizam cores de maneiras distintas. Algumas línguas possuem múltiplos termos para descrever variações de uma cor específica, enquanto outras utilizam um único termo para uma ampla gama de matizes. Isso pode afetar a sensibilidade dos falantes para distinguir entre essas cores. Da mesma forma, a presença ou ausência de certos conceitos em uma língua pode facilitar ou limitar a capacidade de seus falantes de compreender e discutir determinadas ideias.

 

Vocabulário e Cognição Social

 

O vocabulário de uma língua é uma ferramenta poderosa que influencia a cognição social. Palavras carregam significados que refletem e perpetuam valores culturais e sociais. Termos pejorativos, elogiosos, neutros ou técnicos moldam atitudes e comportamentos. Por exemplo, a terminologia usada para descrever grupos sociais pode reforçar estereótipos e preconceitos ou promover respeito e igualdade. O vocabulário também influencia a percepção de papéis sociais e identidades, afetando como indivíduos se veem e são vistos pelos outros.

 

Além disso, certos conceitos e metáforas recorrentes em uma língua podem estruturar o pensamento e a ação. George Lakoff e Mark Johnson, em seu trabalho sobre metáforas cognitivas, argumentam que metáforas comuns, como "tempo é dinheiro", moldam a forma como as pessoas pensam sobre e gerenciam seu tempo. Essas construções linguísticas influenciam decisões diárias e a compreensão de conceitos mais abstratos.

 

Códigos Sociais e Percepção Individual

 

Os códigos sociais presentes na linguagem determinam normas e expectativas de comportamento dentro de uma comunidade. Eles estabelecem o que é considerado apropriado ou inapropriado, influenciando a maneira como as pessoas interagem. Esses códigos são aprendidos e internalizados desde cedo, tornando-se uma parte fundamental da identidade e da percepção individual.

 

Por exemplo, formas de saudação, expressões de respeito e modos de discurso variam significativamente entre culturas e refletem valores sociais subjacentes. Em algumas culturas, o uso de títulos e formas honoríficas é essencial para mostrar respeito, enquanto em outras, uma abordagem mais direta e informal é valorizada. Esses códigos moldam a percepção de hierarquias sociais e relações interpessoais.

 

Percepção de Mundo e Identidade

 

A linguagem não apenas estrutura a percepção de objetos e eventos, mas também desempenha um papel central na construção da identidade individual e coletiva. Ela é o meio pelo qual as pessoas expressam suas experiências, sentimentos e pensamentos, e através do qual constroem e comunicam suas identidades. A forma como alguém fala, incluindo o uso de dialetos, sotaques, gírias e registros formais ou informais, contribui para a percepção de si mesmo e dos outros.

 

Narrativas compartilhadas, mitos, histórias e discursos políticos moldam a compreensão coletiva de eventos históricos e realidades sociais. Esses elementos linguísticos criam uma visão de mundo compartilhada que influencia atitudes, valores e ações. Eles podem unir ou dividir grupos sociais, promover a coesão ou gerar conflito.

 

Em suma, a linguagem é uma ferramenta essencial que molda a percepção, a cognição e a identidade. Ao permitir a transição entre pensamento concreto e abstrato, ela facilita a comunicação e a reflexão sobre o mundo. A estrutura da linguagem, incluindo vocabulário, conceitos e códigos sociais, influencia a forma como os indivíduos e as sociedades percebem e interpretam a realidade. Portanto, a linguagem é não apenas um meio de comunicação, mas também um poderoso agente na formação da percepção e da identidade, tanto individual quanto coletiva.

 

A manipulação dos signos

 

A manipulação da linguagem, dos signos e dos significados é uma prática comum que pode ter profundas implicações na percepção social, na construção de identidades e na compreensão do mundo. A linguagem, por sua natureza arbitrária, permite uma flexibilidade que pode ser usada tanto para esclarecer quanto para enganar. Neste contexto, a manipulação dos signos é uma ferramenta poderosa que pode ser usada para ocultar significados, criar novos sentidos e influenciar a percepção das pessoas. A análise dessa manipulação requer uma compreensão profunda das relações entre signo, significante e significado, bem como das dinâmicas sociais que sustentam essas práticas.

 

Estrutura do Signo Linguístico

 

De acordo com Ferdinand de Saussure, o signo linguístico é composto por dois elementos: o significante (a forma sonora ou gráfica) e o significado (o conceito ou ideia). A relação entre significante e significado é arbitrária, ou seja, não há uma conexão natural entre a palavra e o objeto ou ideia que ela representa. Isso permite uma grande flexibilidade na forma como os signos podem ser usados e interpretados.

 

Manipulação dos Signos

 

A manipulação dos signos envolve a alteração da relação entre significante e significado, de modo a influenciar a interpretação de um dado conceito ou objeto. Isso pode ocorrer de diversas formas:

 

1. Recontextualização: A mudança do contexto em que um signo é usado pode alterar seu significado. Por exemplo, termos técnicos podem ser utilizados fora de seu contexto original para impressionar ou confundir o público. O uso de jargões especializados em discursos políticos ou comerciais pode obscurecer a verdade ou criar uma impressão de autoridade.

 

2. Eufemismos e Disfarces: Substituir palavras ou expressões por outras que têm uma conotação mais suave ou neutra é uma maneira de manipular o significado. Governos e corporações frequentemente utilizam eufemismos para suavizar a percepção de ações controversas, como referir-se a "danos colaterais" em vez de "mortes de civis".

 

3. Ambiguidade e Vaguidade: A linguagem ambígua ou vaga pode ser usada para evitar compromissos claros e permitir múltiplas interpretações. Isso é frequentemente observado em discursos políticos, onde declarações vagas permitem a adaptação a diferentes audiências sem a necessidade de posicionamentos claros.

 

4. Redefinição: Alterar deliberadamente o significado de palavras é uma forma de manipulação. Por exemplo, conceitos como "liberdade" ou "democracia" podem ser redefinidos para servir a interesses específicos, desviando-se de seus significados tradicionais e criando novas conotações que favorecem certas agendas políticas.

 

Impacto da Manipulação na Percepção

 

A manipulação dos signos e dos significados pode ter um impacto profundo na percepção individual e social. Ela pode moldar opiniões, influenciar comportamentos e determinar a forma como as pessoas interpretam a realidade. A seguir, exploramos alguns dos principais impactos dessa manipulação:

 

1. Formação de Ideologias: Ideologias são sistemas de ideias que justificam e sustentam determinadas práticas e estruturas de poder. A manipulação dos signos é essencial para a formação e perpetuação de ideologias, pois permite a criação de narrativas que legitimam a ordem social existente. Por exemplo, a retórica de meritocracia pode ser usada para justificar desigualdades sociais ao sugerir que elas são resultado de diferenças individuais de esforço e talento, ocultando as estruturas sistêmicas de exploração.

 

2. Controle Social: A manipulação da linguagem é uma ferramenta eficaz de controle social. Governos e instituições podem usar a manipulação dos signos para controlar a informação e moldar a opinião pública. A propaganda é um exemplo clássico, onde a repetição de mensagens simplificadas e emocionalmente carregadas pode influenciar as atitudes e crenças da população.

 

3. Desinformação e Fake News: A disseminação de informações falsas ou enganosas depende da manipulação dos signos. A desinformação pode alterar a percepção da realidade, criando confusão e desconfiança. Isso é particularmente perigoso em contextos onde a verdade factual é essencial, como na saúde pública ou na política.

 

Exemplos de Manipulação

 

Para ilustrar como a manipulação dos signos opera na prática, consideremos alguns exemplos:

 

- Jargões Técnicos: No contexto empresarial, o uso de jargões técnicos pode ser uma forma de manipulação. Um executivo pode usar termos como "sinergia", "alavancagem" ou "paradigma" para comunicar uma sensação de complexidade e competência, mesmo quando a mensagem subjacente é simples ou vazia. Esse uso do jargão pode confundir os ouvintes e impedir o questionamento crítico.

 

- Política e Propaganda: Em campanhas políticas, a manipulação dos signos é uma estratégia comum. Um candidato pode usar slogans e frases de efeito para simplificar questões complexas e criar uma imagem positiva de si mesmo. Por exemplo, slogans como "Esperança e Mudança" podem evocar sentimentos positivos sem fornecer detalhes concretos sobre políticas específicas.

 

- Eufemismos na Mídia: A mídia frequentemente usa eufemismos para reportar eventos de maneira que suavize o impacto emocional. Termos como "intervenção militar" em vez de "invasão" ou "reformas econômicas" em vez de "cortes de gastos" são usados para moldar a percepção pública e minimizar a resistência.

 

A mentira e seu papel social

 

A linguagem é uma ferramenta complexa e multifacetada que vai além da simples nomeação de objetos e compreensão do mundo. Ela desempenha um papel crucial na comunicação, na construção de identidades e na interação social. Uma de suas funções, menos frequentemente discutida mas igualmente importante, é a capacidade de ocultar, manipular e distorcer a realidade. Nesse contexto, a mentira emerge como um fenômeno significativo que serve a várias funções sociais e individuais. Pierre Weil e Sigmund Freud oferecem perspectivas valiosas para entender como a mentira se relaciona com a realização de desejos pessoais e a adaptação às conveniências sociais.

 

A Função Social da Mentira

 

A mentira pode ser vista como uma estratégia de comunicação que manipula a percepção de outra pessoa ou grupo para servir a certos interesses. Embora muitas vezes condenada moralmente, a mentira possui funções sociais importantes. Ela pode suavizar a realidade, amortecer o impacto da verdade e evitar conflitos. Em muitas situações, a verdade nua e crua pode ser dolorosa ou desestabilizadora. A mentira, nesse sentido, funciona como um mecanismo de proteção, tanto para o mentiroso quanto para o receptor da mentira.

 

Pierre Weil, em suas obras sobre a psicologia da comunicação, argumenta que a mentira é uma forma de criar uma realidade alternativa que permite ao indivíduo lidar com situações difíceis ou desconfortáveis. Nesse contexto, ele sugere que a mentira pode ser uma maneira de "amortecer" o impacto da verdade, tornando-a mais palatável. Por exemplo, em contextos sociais onde a verdade pode causar sofrimento desnecessário, uma mentira pode ser utilizada para manter a harmonia e o bem-estar.

 

Manipulação e Conveniência

 

Além de suavizar a realidade, a mentira também é uma ferramenta poderosa de manipulação nas mais diversas dimensões. Ela pode ser usada para influenciar o comportamento e as decisões de outras pessoas, ajustando-as às conveniências e interesses do mentiroso. Seja em contextos pessoais, empresariais ou políticos, a mentira pode ser empregada para alcançar objetivos específicos.

 

Em ambientes corporativos, por exemplo, a manipulação da verdade pode ser usada para proteger a imagem da empresa, esconder falhas ou promover produtos de maneira enganosa. Da mesma forma, em relações pessoais, a mentira pode ser utilizada para manter uma fachada, esconder fraquezas ou conquistar benefícios. A manipulação, nesse caso, não é apenas uma questão de ocultar a verdade, mas de criar uma narrativa que sirva aos interesses do mentiroso.

 

A Realização das Fantasias Pessoais

 

Pierre Weil também explora como a mentira pode ser uma ferramenta para a realização de fantasias pessoais. Ele descreve como os indivíduos podem usar a mentira para criar uma versão idealizada de si mesmos ou de suas circunstâncias. Essa versão idealizada pode ser uma forma de lidar com a insatisfação ou frustração em relação à realidade. Ao mentir, o indivíduo constrói uma narrativa que se alinha com seus desejos e expectativas, proporcionando uma sensação temporária de realização.

 

O Princípio do Prazer e Freud

 

Sigmund Freud oferece uma perspectiva complementar através de sua teoria do princípio do prazer. Segundo Freud, o princípio do prazer é a força motriz que impulsiona os indivíduos a buscar gratificação imediata e evitar a dor. A mentira, nesse contexto, pode ser vista como uma manifestação do princípio do prazer. Ao distorcer a realidade, a mentira permite que o indivíduo evite confrontar verdades dolorosas e busque uma satisfação momentânea.

 

Freud, de certo modo, argumenta que o inconsciente desempenha um papel crucial na formação das mentiras. Muitas vezes, as mentiras não são planejadas de maneira consciente, mas emergem como uma resposta automática para proteger o ego de ameaças externas. Essa proteção pode envolver a repressão de verdades desagradáveis ou a projeção de desejos inconscientes em uma narrativa aceitável.

 

A Coesão entre Mentira, Prazer e Manipulação

 

A relação entre a mentira, o princípio do prazer e a manipulação social é complexa e interdependente. A mentira pode ser vista como uma ferramenta que permite ao indivíduo navegar entre as exigências da realidade e os desejos internos. Ela oferece uma forma de criar um equilíbrio entre a busca pelo prazer e a necessidade de adaptação às conveniências sociais.

 

Por exemplo, em um cenário onde a verdade pode causar um conflito significativo, a mentira pode ser usada para manter a paz e a harmonia. Isso não apenas protege o indivíduo de uma dor imediata, mas também manipula a percepção dos outros para criar um ambiente mais favorável. Assim, a mentira se torna uma estratégia para alcançar um equilíbrio entre os desejos pessoais e as demandas sociais.

 

Obstrução do feio no humano

 

A condição humana é marcada por uma constante busca de realização, moldada por desejos primordiais que remontam às nossas primeiras experiências de prazer, frequentemente associadas ao êxtase uterino. Desde cedo, tentamos recriar essas fantasias de prazer através do poder, do conhecimento e das posses. Porém, nossos interesses, inclinações e cobiças muitas vezes entram em conflito com o bem-estar alheio, resultando em um ambiente social onde a luta de todos contra todos, descrita por Thomas Hobbes, se torna prevalente. Nesse contexto, a linguagem desempenha um papel crucial não só na comunicação e na compreensão, mas também na distorção da verdade para mascarar essa feiura intrínseca à condição humana. A mentira, então, assume um papel estético, suavizando a realidade e tornando a crueldade humana mais palatável.

 

A Natureza Humana e a Busca de Realização

 

Como já delineado, Sigmund Freud, em sua teoria psicanalítica, argumenta que os seres humanos são movidos por desejos inconscientes que se originam das primeiras experiências de prazer. Esses desejos moldam nossas fantasias e influenciam nosso comportamento ao longo da vida. A busca pelo poder, pelo saber e pelas posses são manifestações dessas fantasias primordiais. Conforme crescemos, tentamos satisfazer esses desejos através de diferentes meios, muitas vezes em detrimento dos outros.

 

O Homem como Lobo do Homem

 

Thomas Hobbes, em sua obra *Leviatã*, descreve a vida no estado de natureza como "solitária, pobre, sórdida, brutal e curta". Ele argumenta que, sem a imposição de uma autoridade superior, os seres humanos estão em um estado constante de guerra de todos contra todos. Hobbes vê a natureza humana como intrinsecamente egoísta e competitiva, o que leva à necessidade de um contrato social para garantir a paz e a segurança.

 

Essa visão hobbesiana sugere que o mundo humano é, em nossos termos, essencialmente cínico, cruel e marcado pela luta incessante por vantagens pessoais. A linguagem, nesse contexto, não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas também um meio de manipulação e ocultação da verdade.

 

A Estética da Mentira

 

A mentira, como uma forma de manipulação linguística, pode ser vista como uma expressão artística que transfigura a feiura humana em algo mais aceitável. Friedrich Nietzsche, em *Além do Bem e do Mal*, argumenta que os seres humanos têm uma necessidade inata de beleza e ordem, mesmo que isso signifique distorcer a verdade. Para Nietzsche, a mentira pode ser uma forma de criar uma ilusão necessária para suportar a realidade dura e caótica.

 

Michel Foucault, em seus estudos sobre o poder e a verdade, sugere que a verdade é frequentemente construída e manipulada por aqueles em posições de poder para manter seu domínio. Em *A Ordem do Discurso*, Foucault explora como os discursos são usados para controlar e definir a realidade, sugerindo que a "verdade" socialmente imposta é, em muitos casos, uma construção estratégica. Nesse sentido, a mentira pode ser vista como uma ferramenta para moldar a percepção e manter a ordem social.

 

A Função da Mentira na Sociedade

 

A mentira, portanto, serve a múltiplas funções sociais e individuais. Ela pode proteger o ego, evitar conflitos, manter a harmonia social e permitir a realização de desejos pessoais. Ao mascarar a verdade, a mentira suaviza a feiura intrínseca da condição humana, criando uma realidade mais palatável e esteticamente agradável.

 

Kant, em sua obra *Fundamentação da Metafísica dos Costumes*, argumenta que a moralidade deve ser baseada em princípios universais e que a mentira é, em si, imoral. No entanto, por razões particulares, convenções sociais ou, ainda, conveniências, os indivíduos ou particulares, assim como as grandes instituições podem contestar e, ademais, deformar os fatos ainda que sejam autoevidentes ou, ainda, necessidades da razão humana (consoante o que dissemos sobre o sujeito transcendental kantiano)

 

A Dialética da Verdade e da Mentira

 

Platão, em *A República*, explora a ideia de que a verdade pode ser difícil de alcançar e que as aparências muitas vezes enganam. O mito da caverna, uma das alegorias mais famosas de Platão, ilustra como os seres humanos podem estar presos a ilusões e falsas percepções da realidade. Nesse contexto, a mentira pode ser vista como uma continuação dessas ilusões, uma forma de manipular as sombras na parede da caverna para criar uma realidade mais confortável.

 

Jean-Paul Sartre, em *O Ser e o Nada*, discute a má-fé, ou autoengano, como uma forma de lidar com a angústia existencial. Sartre argumenta que os seres humanos frequentemente mentem para si mesmos para evitar confrontar verdades desconfortáveis sobre sua própria existência. A mentira, nesse sentido, é uma forma de escapar da responsabilidade e da liberdade inerentes à condição humana.

 

O que não se pode dizer?

 

Vivemos em uma sociedade onde a comunicação é essencial para a coexistência pacífica e produtiva. No entanto, essa comunicação é frequentemente regulada por normas sociais que ditam o que pode ou não ser dito. Muitas dessas normas servem para mascarar verdades inconvenientes que, se expostas, colocariam em xeque nossa moralidade, ideologias e interesses pessoais. Este texto explora algumas dessas verdades silenciadas e as razões pelas quais são censuradas. É nesse contexto que podemos evocar a máxima cartesiana: “Para saber o que as pessoas realmente pensam, preste atenção no que elas fazem, e não no que elas dizem.”

– René Descartes

 

Intenções Egoístas e Práticas de Exploração

 

Uma das principais áreas de censura envolve nossas intenções egoístas e práticas de exploração. O desejo de poder, a ambição desenfreada e a colocação dos interesses pessoais acima do bem coletivo são realidades que preferimos não admitir abertamente. Estas intenções egoístas, muitas vezes, levam a práticas de exploração econômica, sejam dos particulares entre si, ou das instituições aos particulares, e manutenção de desigualdades sociais. Discutir abertamente como exploramos os outros para benefício próprio desafia a narrativa de uma sociedade justa que muitos de nós, por mais algum tempo, ainda queremos acreditar que existe.

 

Falhas Morais e Vulnerabilidades

 

Outro conjunto de verdades frequentemente silenciadas envolve nossas falhas morais e vulnerabilidades. A hipocrisia, a desonestidade e a corrupção são comportamentos comuns que preferimos não revelar. Além disso, nossos medos de fracasso, inseguranças pessoais e fragilidades emocionais são aspectos que mantemos escondidos para proteger nossas autoimagens. Admitir essas fraquezas pode levar à perda de respeito e de status social, além de expor a realidade de que todos somos imperfeitos e sujeitos a falhas.

 

Comportamentos Antiéticos e Contradições Ideológicas

 

A manipulação e o engano consciente são comportamentos antiéticos que muitos praticam, mas poucos admitem. Usamos a linguagem e outras formas de comunicação para manipular percepções e moldar realidades que nos favorecem. Além disso, as contradições ideológicas são frequentemente ocultadas. Por exemplo, muitos pregam ideais elevados de justiça e igualdade, mas na prática, agem de maneira contrária a esses ideais. Essas contradições colocam em cheque a autenticidade de nossas crenças e discursos.

 

Interesses Econômicos e Desigualdades Estruturais

 

Os interesses econômicos ocultos são outra área onde a verdade é frequentemente mascarada. A ganância corporativa e os lucros a qualquer custo são realidades que preferimos não discutir abertamente. Além disso, as desigualdades estruturais, como o racismo institucional, o sexismo e a homofobia, são frequentemente minimizadas ou negadas. Admitir essas realidades exigiria uma reavaliação radical de nossas estruturas sociais e econômicas, algo que muitos preferem evitar.

 

Abusos de Poder e Danos Ambientais

 

Finalmente, os abusos de poder e os danos ambientais são verdades que são frequentemente silenciadas. A violência policial, o autoritarismo e a censura governamental são práticas que desafiam a imagem de um estado justo e democrático. Da mesma forma, os danos ambientais causados pela destruição ecológica, poluição industrial e mudanças climáticas são questões que muitos preferem negar ou minimizar para evitar a responsabilidade e as mudanças necessárias para a sustentabilidade.

 

Reações à Crítica

 

Quando expomos e criticamos comportamentos inescrupulosos, frequentemente encontramos resistência e reações adversas. Essas reações são compreensíveis, dado que a crítica pode ameaçar a autoimagem, expor vulnerabilidades e desafiar o status quo. A seguir, exploramos algumas das principais razões pelas quais as pessoas podem se opor à denúncia de seus comportamentos, incluindo acusações de cinismo, ressentimento e imaturidade.

 

1. Defesa da Autoimagem

 

Uma das razões mais fundamentais para a resistência à crítica é a necessidade de proteger a autoimagem. Os seres humanos tendem a se ver de maneira positiva e justificam seus comportamentos através de mecanismos de defesa. Quando confrontados com críticas que expõem comportamentos antiéticos ou egoístas, as pessoas podem reagir defensivamente para manter uma imagem de si mesmas como justas e morais. Cuja reação é: "Quem faz essas críticas é apenas um cínico."

 

Ao rotular o crítico como cínico, a pessoa criticada desvia a atenção de seus próprios comportamentos e questiona a moralidade ou as intenções do crítico. Isso permite que ela mantenha sua autoimagem intacta sem precisar confrontar as críticas.

 

2. Medo de Consequências Sociais

 

A denúncia de comportamentos inadequados pode ter consequências sociais significativas. Admitir falhas ou comportamentos antiéticos pode levar à perda de status, respeito e oportunidades. O medo dessas consequências pode motivar uma resistência vigorosa à crítica. Cuja reação geralmente é: "Esse tipo de pensamento é puro ressentimento."

 

Aqui, a acusação de ressentimento serve para desqualificar a crítica, sugerindo que ela é motivada por inveja ou frustração pessoal, em vez de ser uma avaliação justa e objetiva. Isso protege a pessoa criticada das potenciais repercussões sociais.

 

3. Conservadorismo Psicológico

 

As pessoas têm uma tendência natural a resistir a mudanças e a defender o status quo. O conservadorismo psicológico é a inclinação de manter as crenças e comportamentos existentes, minimizando a dissonância cognitiva e a necessidade de adaptação. Cuja reação é: "Quem pensa assim é imaturo e não entende a complexidade da vida."

 

Ao acusar o crítico de imaturidade, a pessoa criticada reafirma a validade de suas próprias crenças e práticas. Isso não só preserva o status quo, mas também invalida a crítica como sendo ingênua ou simplista.

 

4. Mecanismos de Defesa Psicológica

 

Sigmund Freud descreveu vários mecanismos de defesa que as pessoas utilizam para proteger seu ego de ameaças. A crítica pode ser percebida como uma ameaça significativa, desencadeando respostas defensivas como a negação, a projeção e a racionalização. Cuja reação é: "Essas críticas são exageradas e não refletem a realidade."

 

Negar a validade da crítica ou projetar as próprias falhas nos outros são formas de defesa psicológica. Racionalizar os comportamentos criticados, justificando-os com argumentos lógicos superficiais, também serve para proteger o ego e evitar a necessidade de mudança.

 

5. Conservação de Poder e Privilégio

 

Em muitos casos, as críticas aos comportamentos inescrupulosos desafiam diretamente as estruturas de poder e privilégio. As pessoas em posições de poder têm um interesse em manter essas estruturas e podem reagir agressivamente a qualquer ameaça percebida. Cuja reação é: "Essa crítica é apenas uma tentativa de desestabilizar o sistema."

 

Ao acusar o crítico de ter intenções subversivas, a pessoa criticada desvia a atenção dos problemas estruturais e reforça a legitimidade do sistema existente. Isso ajuda a manter o poder e os privilégios inalterados.

 

Assim, a crítica, especialmente quando direcionada a comportamentos inescrupulosos, frequentemente desencadeia reações adversas. As pessoas tendem a proteger sua autoimagem, evitar consequências sociais negativas e manter o status quo. Essas reações podem ser vistas através de várias respostas comuns.

 

Conclusão

 

Originalmente, somos movidos por fantasias que nos impulsionam em busca de prazer, poder e posses. No entanto, reconhecer essa motivação inicial não exclui completamente a existência de algo como um sujeito transcendental, conforme delineado na filosofia de Kant. Esse sujeito transcendental representa um substrato pré-ontológico da racionalidade humana, conforme exposto na "Crítica da Razão Pura". Assim, além da nossa sensibilidade e das nossas percepções sensoriais, existe um componente cognitivo, a razão pura, que organiza e interpreta os dados sensoriais de maneira a torná-los compreensíveis.

 

É precisamente por essa estrutura cognitiva, ou pela emergência transcendental da cognição humana, que se torna possível alcançar a verdade, ainda que essa verdade esteja sempre vinculada ao campo fenomênico, isto é, à realidade como ela se manifesta para nós.

 

Não se trata aqui de abordar verdades absolutas, como a existência de Deus ou a vida após a morte, mas de afirmar que nossa razão é capaz de compreender naturalmente noções fundamentais sobre uma série de entidades físicas, sociais, psicológicas e morais. Assim, a verdade, dentro dos limites em que se manifesta, torna-se acessível à nossa compreensão.

 

Portanto, o sujeito transcendental desempenha um papel crucial no acesso à verdade. Ele funciona como uma categoria necessária e imediata de interpretação, verificando internamente, a cada percepção sensorial, se o que se apresenta está submetido a essa estrutura cognitiva fundamental.

 

Em nossa busca pela felicidade, motivada pelo imperativo do amor-próprio, frequentemente somos influenciados por inputs fantasiosos. Esses inputs, que nos orientam conforme nossas inclinações, desejos, fantasias e necessidades psicofisiológicas, podem nos levar, em certa medida, a distorcer os dados ou nosso próprio conhecimento, de modo a concretizar nossos objetivos, seja por pressão social ou por vontade própria. No entanto, essa distorção consciente dos dados não pode ser total, pois, caso fosse, a farsa resultante invalidaria nossa "legitimidade". Surge, então, a necessidade de um rearranjo sociocultural, realizado por meio da linguagem, utilizando mecanismos como o deslocamento de sentido e a reconfiguração dos elementos semióticos — signo, significado, significante e referente — além de outros dispositivos de natureza psicocínica e sociocínica.

 

Nesse contexto, o cinismo emerge como um intermediário que obstrui o campo de visão, atuando como um figurador entre o fenômeno externo e nossa Razão (Logos) ou cognição interna. Em outras palavras, ele se posiciona entre a realidade externa e sua representação mental interna.

 

O cinismo, portanto, funciona como um dispositivo biopsicossocial que transcreve os dados externos para o nosso mundo interior, subjetivo, a partir de nosso horizonte biográfico e de valores, valores esses alinhados às nossas exigências psicofisiológicas. Ao mesmo tempo, ele redesenha nosso mundo subjetivo em relação a nós mesmos. Por exemplo, mesmo sabendo que algo é errado segundo nossos próprios valores, o cinismo pode, gradualmente, alterar o sentido e o significado desse algo, tornando-nos, aos poucos, mais tolerantes em relação àquilo que inicialmente rejeitávamos. Nesse caso, o cinismo atua para atenuar o sofrimento psicológico, sem necessariamente buscar vantagens pessoais, como ocorre quando os dados sensoriais são transcriados de maneira conveniente.

 

É nesse cenário que a verdade se torna problemática, pois ela tem o potencial de expor contradições internas e externas, gerando uma série de problemas, tanto sociais quanto psicossociais ou psicológicos. A verdade, ao ser revelada, pode criar um turbilhão de conflitos, questionando as narrativas que sustentam nossa identidade e a ordem social, e é por isso que muitas vezes ela é contestada ou evitada.

 

Devemos, em primeiro lugar, nos perguntar se existe uma lei moral de caráter universal. Essa indagação refere-se, basicamente, à existência de princípios morais fundamentais que determinam a conduta de seres racionais e dotados de vontade. A resposta, de forma sucinta, é que sim, existe tal lei. Essa conduta geral é sustentada pelo princípio da conservação, de natureza biológica, e, no plano psicológico, está relacionada à busca da felicidade em virtude do amor próprio. Assim, nossas ações, em condições normais e não patológicas, tendem a buscar a realização da felicidade pessoal.

 

É por isso que atos lesivos, sejam psicológicos ou físicos, representam um problema, pois contrariam uma disposição natural dos seres inteligentes e racionais de promover o próprio bem-estar. Ninguém age contra si mesmo por natureza; todos buscamos nosso próprio bem. Além disso, ao procurarmos nosso próprio bem, geralmente tentamos também preservar, em certa medida, o bem-estar alheio. Isso pode ocorrer porque compreendemos que ninguém vive isolado e que nosso bem-estar está, de alguma forma, interligado ao bem-estar daqueles que nos rodeiam, seja no contexto familiar, nas amizades ou nas relações sociais mais amplas.

 

Nesse cenário, aqueles que formam opiniões ou emitem juízos para si mesmos buscam não apenas o próprio bem, mas também a veracidade dessas opiniões. Mais uma vez, isso nos leva ao problema da verdade. Quando alguém formula um juízo, como "o que é achado não é roubado", "a natureza opera pela lei do mais forte", "o homem deve ser forte e agir com malícia se necessário" ou "tirar vantagem de todos é a melhor forma de viver", essa pessoa acredita que tal juízo é verdadeiro. Não faria sentido que alguém sustentasse para si algo que considera falso ou enganoso, pois todos, dentro dessa lei moral universal, procuram aquilo que é bom e que pode realizar o propósito final de suas vidas, que é a felicidade e o amor próprio.

 

Embora existam diferentes formas de entender o caminho para a felicidade, refletindo diversos modos de avaliação e diferentes horizontes de valores, o ponto de partida e o objetivo final são os mesmos: a busca pela felicidade e pela autoconservação, guiada por uma necessidade originária de amar a si mesmo.

 

Quando as pessoas são confrontadas com seus valores, opiniões, juízos e interpretações por outras, especialmente em situações onde o erro ou a inverdade são claramente expostos, essa confrontação pode gerar uma resposta hostil. Isso ocorre porque, ao serem desafiadas, as pessoas se veem obrigadas a reavaliar todo o seu processo de pensamento, revisar conceitos e até mesmo alterar hábitos e comportamentos. Além disso, essa mudança pode implicar na perda de certos privilégios ou vantagens psicossociais que antes eram sustentados por crenças equivocadas. Nesse contexto, surgem discursos relativistas e pluralistas que, de certa forma, promovem uma perspectiva niilista, na qual nada é considerado verdadeiramente fundamental ou basilar. Esses discursos permitem que o indivíduo funcione à revelia de sua própria razão e dos fatos, ignorando a verdade em favor de conveniências pessoais.

 

A ideologia, inserida nesse mesmo contexto, atua como um mecanismo de justificativa para ideias, juízos, pensamentos ou práticas, mesmo que essas justificativas contenham lacunas, contradições ou erros evidentes. A ideologia, por sua natureza, pode inclusive validar elementos imorais, que direta ou indiretamente causam dano a outras pessoas. No cotidiano, a verdade se apresenta como um problema justamente por seu potencial lesivo: ela tem a capacidade de expor aquilo que as pessoas escondem de si mesmas e da sociedade, revelando aspectos de egoísmo, cinismo, mentiras e hipocrisia que muitos preferem não enxergar.

 

As reações violentas, hostis e intensas contra aqueles que pronunciam a verdade não servem para refutar a falsidade, mas, paradoxalmente, reforçam a veracidade do enunciado que provocou tal reação. Quando uma pessoa é confrontada, seja em uma conversa, em redes sociais, ao ler um livro, assistir a um programa de TV, ouvir uma música ou consumir qualquer outro tipo de conteúdo, e se vê profundamente perturbada a ponto de sentir angústia, ansiedade ou irritação, essa resposta emocional é frequentemente um sinal de que o enunciado atingiu uma verdade incômoda. Essa reação intensa indica uma resistência interna à necessidade de rever conceitos, ideias e valores arraigados.

 

É importante notar que, para algumas pessoas, o reconhecimento da verdade não representa um problema, desde que possam continuar vivendo de maneira conveniente e confortável. Para elas, o desconforto não surge porque já possuem uma pré-compreensão do mundo como um espaço de relativismo, onde a realidade é vista como uma arena de luta de forças e onde a funcionalidade prática prevalece sobre a busca pela verdade. Essas pessoas podem adotar a perspectiva de que, embora a verdade seja "A", para sobreviver e prosperar na sociedade, é necessário ignorá-la em favor de uma prática cotidiana que permita operar com as realidades "B", "C" ou "D", pois o mundo real não é visto como o espaço da verdade, mas sim da funcionalidade.

 

Algumas pessoas acreditam que não há outra maneira de viver além de aceitar as falsidades de suas vidas, justificando essa postura com a ideia de que qualquer tentativa de agir de maneira diferente resultaria em prejuízos pessoais. Assim, elas se conformam com a situação, sem sofrer com a falsidade, pois consideram que essa é a única forma de preservar seu bem-estar e felicidade, que são os elementos fundamentais que orientam sua vontade.

 

Nesse contexto, essas pessoas não se veem como más ou problemáticas; pelo contrário, elas acreditam ser possível viver uma vida falsa em relação aos fatos e à verdade, e ainda assim se considerarem boas pessoas. Isso ocorre porque acreditam que têm a capacidade de manejar suas ações de maneira a evitar causar sofrimento físico ou psicológico a outras pessoas. Assim, elas concluem que podem viver uma vida ética ou moral, mesmo que suas ações sejam, em alguns momentos, contrárias à verdade ou aos fatos, inclusive em questões morais.

 

Essas pessoas podem agir de maneira imoral em determinadas situações, mas tendem a acreditar que, no conjunto, o somatório de suas ações é positivo. Por exemplo, se uma pessoa comete oito atos bons e dois ruins, ela pode considerar que, no saldo final, ainda está em vantagem moral. Essa perspectiva revela uma maturidade na maneira como algumas pessoas lidam com suas contradições, desde que consigam manejar corretamente essas questões. Entretanto, a maioria das pessoas não se preocupa com esse tipo de balanço ético, agindo de forma mais egoísta, o que, paradoxalmente, muitas vezes não leva à realização do fim que procuram — a maximização de sua felicidade.

 

Em muitos casos, essa postura egoísta pode ser contraditória, pois, ao buscar vantagem em tudo, a pessoa pode acabar encontrando problemas que surgem justamente de suas atitudes amorais ou imorais. Essa é uma apreciação cínica da realidade, onde o indivíduo age como se o fim justificasse os meios, sem se preocupar com as consequências éticas de suas ações.

 

Um ponto adicional a ser considerado é a questão do inconsciente freudiano. Esse inconsciente realmente existe? Autores como Paulo Ghiraldelli Júnior sugerem que o inconsciente se inscreve mais como um campo conceitual do que como uma realidade concreta. Esse conceito permite que se fale, de maneira não ostensiva ou agressiva, sobre as contradições, cinismo, mentiras e hipocrisia. Coloca-se a responsabilidade dessas questões não no "eu" consciente, mas em um "outro" que habita dentro de nós. Assim, por exemplo, não seria "eu" quem possui desejos lascivos, ganância ou maldade, mas uma espécie de "outro" em mim, uma entidade inconsciente que atua de forma dissociada do meu eu consciente. O inconsciente, então, seria um recurso para se abordar socialmente o que não se pode falar diretamente.

 

Em resumo, o cinismo é uma parte essencial do modo como a humanidade vive e sempre viveu, atuando como um mecanismo de transcrição e ressignificação dos fenômenos para que possam ser moldados de acordo com as fantasias primárias e os desejos fundamentais que buscam a felicidade humana. Ao mesmo tempo, o cinismo expressa a vontade de inverdade, que é um traço geral da vontade humana em qualquer condição. Essa vontade de inverdade frequentemente se sobrepõe a demandas morais que derivam de uma compreensão ontológica da racionalidade sobre o que as coisas são e como funcionam. Essa compreensão pode ser distorcida em nome de fins particulares ou coletivos, especialmente quando uma ordem cultural ou social impõe normas que contradizem princípios morais fundamentais. Mesmo diante de evidências claras de contradição, erro, mentira, hipocrisia e manipulação, o indivíduo tende a não rejeitar essas condições, evidenciando assim a prevalência da vontade de inverdade sobre certas necessidades adaptativas ou evolutivas.

 

 

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