A lógica subjacente à ordem do discurso cínico consoante às mazelas biopsicossociais
A ordem do
discurso cínico:
A lógica
subjacente à ordem do discurso cínico consoante às mazelas biopsicossociais
Thiago Carvalho de
Souza
06 de agosto de
2024
Introdução
Como nossa
temática é fundamental, consiste em delinear de modo muito particular o
cinismo, tornando-o um objeto de estudo contemporâneo capaz de explicar a
mentira, o erro, a ilusão, a exploração, as contradições psicossociais e outras
formas de alienação e causas do sofrimento. Parece bastante importante começar
de modo súbito, antes de apresentar o problema das fantasias, o problema do
princípio do prazer, o conceito de vontade em Schopenhauer ou o conceito de
sujeito transcendental em Kant, ou mesmo as questões de linguagem ligadas à
dinâmica psicossocial. Sugiro que falemos resumidamente sobre os diversos modos
de definição e tratamento epistemológico do cinismo.
O cinismo, ao
longo da história, assumiu diferentes formas e interpretações. Suas definições
variam conforme o contexto filosófico e cultural em que são inseridas. Abaixo
estão cinco definições amplas do cinismo, baseadas em pensadores como
Nietzsche, Sloterdijk e Vladimir Safatle.
1. Cinismo
Clássico:
O cinismo tem suas
raízes na Grécia Antiga com Diógenes de Sinope, que defendia uma vida simples e
em harmonia com a natureza, desprezando convenções sociais e valores materiais.
Para Diógenes e seus seguidores, o cinismo era um meio de alcançar a autossuficiência
e a liberdade individual, vivendo de maneira austera e sincera.
2. Cinismo Moderno
(Nietzsche):
Friedrich
Nietzsche via o cinismo como uma reação crítica à decadência moral e
intelectual da sociedade. Em suas obras, Nietzsche descreve o cinismo como uma
forma de desmascarar a hipocrisia e os valores ilusórios promovidos pela
cultura ocidental. Para ele, o cínico é aquele que vê através das máscaras
sociais e expõe a verdade nua e crua, muitas vezes de maneira provocativa e
iconoclasta.
3. Cinismo como
Ressentimento (Safatle):
Vladimir Safatle,
filósofo contemporâneo brasileiro, interpreta o cinismo como uma manifestação
de ressentimento e descrença nas estruturas sociais e políticas. Segundo
Safatle, o cinismo moderno é uma resposta à sensação de impotência frente à
corrupção e à injustiça, caracterizado por uma atitude de desdém e ironia em
relação às instituições e aos valores estabelecidos.
4. Cinismo da
Era Moderna (Sloterdijk):
Peter Sloterdijk,
filósofo alemão, argumenta que o cinismo na era moderna é uma forma de
"razão cínica", onde os indivíduos reconhecem a falsidade das
ideologias dominantes, mas continuam a agir como se acreditassem nelas.
Sloterdijk vê o cinismo contemporâneo como uma postura pragmática e desiludida,
que aceita a duplicidade moral como inevitável na vida moderna.
5. Cinismo como
Crítica Social:
De maneira geral,
o cinismo pode ser entendido como uma forma de crítica social que desafia as
normas e os valores convencionais. Essa perspectiva critica a superficialidade
e a falsidade das interações humanas, promovendo uma visão mais autêntica e
honesta da vida. O cinismo, nesse sentido, é uma ferramenta para questionar e
desconstruir as estruturas de poder e as pretensões morais da sociedade.
Minha compreensão
do cinismo parte de uma conjuntura que incorpora fortemente as referências de
Nietzsche, Safatle e Sloterdijk. Para mim, assim como para Nietzsche, o cinismo
é uma forma de crítica social que denuncia a hipocrisia e todas as formas de
opressão. No entanto, ao alinhar-me com Safatle, também vejo no cinismo uma
expressão de desilusão e ressentimento em relação às instituições. De forma
abrangente, o cinismo denuncia a ambivalência moral.
Essa visão é
distinta do cinismo como crítica social promovida pela Escola de Frankfurt.
Para mim, o cinismo expressa um descontentamento particular ou social que pode
ou não conter um tom crítico. Ele se refere a uma forma de lidar
existencialmente com a vida humana, sem visar, em sua origem, a expressão de
uma crítica teórica ou a busca pela construção de espaços autênticos, elevação
da dignidade humana ou atenuação do sofrimento. O cinismo, conforme o entendo,
não é uma corrente ideológica ou doutrinária, mas um modus operandi e modus
vivendi do homem comum ou contemporâneo.
Por "homem
comum", refiro-me àquele que não está suficientemente esclarecido, não
possui preocupações existenciais marcantes nem compromissos com a honestidade
ou a verdade. Este homem orienta-se por uma abordagem prática, pragmática e
utilitária, na qual todos os parâmetros éticos e valores elevados que ele
próprio afirma, ele mesmo não pode contestar, rompendo com a lógica, o
princípio da conservação e o bom senso. Assim, joga um jogo duplo,
permitindo-se uma posição inferior, tornando-se animalesco, insensível,
grotesco, rude e, no limite, cruel, desde que possa usufruir de certas
vantagens ou proteger-se contra desvantagens.
Procuro explicar a
origem desse problema nas fantasias e no princípio do prazer, demonstrando que
existem opções viáveis para a verdade através do sujeito acidental kantiano e
outros dispositivos culturais acessíveis e de fácil compreensão. Esses elementos,
muitas vezes contestados em favor de atitudes caprichosas, são essenciais para
enfrentar o problema da civilização, que o cinismo, como aqui discutido,
implica na ausência de civilização.
Não se trata de
uma questão de superestrutura que determina uma infraestrutura, onde os
indivíduos são totalmente limitados. Não estamos falando de uma imposição
vertical pura, mas de uma adesão horizontal do humano consigo mesmo. Trata-se,
portanto, de uma recusa ao pensamento, à verdade, à moralidade e à ética. Tudo
o que é fundamental, necessário, bom e justo só existe em contratos comerciais
que contenham sanções econômicas. Não há compromisso ou responsabilidade para
com as coisas que são necessárias. Todos os valores fundamentais são efetivados
apenas através de contratos comerciais.
Nesse contexto, o
cinismo está na mesma seara do niilismo e, portanto, da morte de Deus
proclamada por Nietzsche, ou seja, a morte de todos os valores superiores,
representando uma espécie de ateísmo velado que se capilariza cada dia mais
pela sociedade, inclusive nas mais religiosamente fervorosas. A sociedade pode
ser religiosa, mas esta religiosidade é, frequentemente, uma adesão a rituais
vazios e compromissos formais que fazem parte do teatro social. Isso não
significa que os indivíduos religiosos ou cidadãos estejam intimamente
comprometidos com aquilo que professam publicamente.
Nesse sentido, o
cinismo que expresso tenta explorar de modo mais profundo e concreto aquilo que
está mais presente no cotidiano. Não se trata apenas da contradição entre
comportamento e discurso, mas marca um distanciamento das pessoas em relação à
ordem cívica, à vida comum e àquilo que conhecemos como res publica, ou seja, a
coisa pública.
Para que o cinismo
seja bem compreendido em seu sentido amplo, é necessário revisitar diversas
dimensões do ser: a biológica, a social e a psicológica. Pela dimensão
biológica, estamos, de algum modo, tratando da psicanálise, uma vez que esta
tem uma forte fundamentação biológica, já que Freud era neurologista e seu
modelo possui um substrato biológico. Pela dimensão social, referimo-nos ainda
à psicologia, pois não existe psicologia individual sem uma psicologia social,
dado que o homem se relaciona no campo dos interesses particulares e das
motivações, que envolvem o poder, o status quo, o econômico, o mundo da
aparência e o social no sentido mais concreto.
O biopsicossocial
refere-se a autores como Schopenhauer, Freud e Pierre Weil, e à linguagem. Cada
um deles, dependendo do modo como são organizados, permite construir uma lente
para ver aquilo que não é possível a olho nu sem o devido tratamento
conceitual. Isso é uma tentativa de descrever como as pessoas, as instituições
e a ordem social funcionam e como isso é um entrave aos problemas filosóficos
fundamentais, como o problema do mal, da justiça, da verdade e da ilusão
metafísica.
A ilusão
metafísica funciona como uma viseira ou um anteparo voluntário que obstrui a
visão do que está em questão, em favor de interesses que destituem o valor do
que está em discussão. Por exemplo, uma pessoa pode ser bem ou mal estimada não
pelo que ela é, mas pelo modo como é percebida socialmente e pelo valor que lhe
é atribuído externamente. Esse valor social pode superestimá-la ou
subestimá-la, e dependendo de como ela é tratada pelos outros, pode incorrer em
sofrimento, mal-estar, adoecimento e até morte. Tudo isso, no limite, por conta
de práticas e interesses ideológicos negativos, orientados por uma cosmovisão
cínica do mundo.
Consoante à
verdade, parece-me que, em um mundo cuja cosmovisão difundida é cínica, há uma
total refratariedade à verdade. Mesmo que a verdade exista e seja evidente,
comprovada cientificamente, filosoficamente ou por qualquer outro meio, desde
que essa proposição verdadeira contraste com certos interesses e práticas, ela
não será aderida. Portanto, o problema da verdade, nesse entendimento que
trago, é um problema biopsicossocial. A verdade não pode ser resolvida apenas
por meio da lógica, metafísica ou ontologia. Não se trata aqui do rigor lógico
de um autor ou disciplina, mas sim da abertura do corpo social e das
instituições à verdade. Caso contrário, haverá um conjunto de dispositivos
biopsicossociais que irão deslocar essa verdade para um lugar que não é o seu,
produzindo censura, exclusão e silenciamento.
Consoante ao
privilégio da justiça, minha visão é de que a justiça não é uma entidade
metafísica; ela não existe além da nossa sociedade ou da nossa razão, nem é
transcendental. A justiça nasce da injustiça, que, por sua vez, surge da
exploração, da opressão, do não reconhecimento do valor humano, ou seja, da não
validação dos direitos humanos e do sofrimento. O sofrimento aponta para uma
injustiça, e esta requer, através da nossa racionalidade, uma compreensão do
que seria a justiça. A justiça, então, torna-se um campo de pesquisa e ação
prática, no sentido de que uma sociedade mais sensata, mais próxima da
civilização, tenderia a se orientar por uma correção, por uma espécie de
ajuste, rumo à efetivação ou corporificação da justiça. Isso não porque a justiça
exista a priori, fora de nós, como um dado metasensorial, mas porque ela é
construída a partir do esforço humano.
Nesse contexto,
minha abordagem do problema do cinismo é transversal. Ela é diagonal, abarcando
elementos verticais e horizontais, abrangendo tanto questões das instituições
quanto dos particulares entre si mesmos. Dessa forma, trago uma visão de uma
filosofia política. Este texto trata de problemas filosóficos relacionados à
linguagem, metafísica e filosofia política, sobretudo a filosofia política de
Thomas Hobbes. Para Hobbes, a vida social é uma luta de todos contra todos,
velada ou contida através de contratos sociais, do poder instituído pelo
Estado, ou mesmo a partir de normas religiosas e morais. Parâmetros
linguísticos também podem mascarar ou ofuscar a realidade, pois, se esta fosse
expressa de maneira nua, poderia causar um mal-estar coletivo capaz de colapsar
o tecido social.
Fantasias
em Pierre Weil
As
inúmeras referências a um local não existente de bem-aventurança
O humano caminha a
procura de algo que não experimentou e, porém, deseja. Em função desse fato,
inúmeros autores, grandes mestres, chegam a conclusão do tipo: ou procuramos o
que tivemos acesso no outro mundo, ao estilo platônico; ou ao que experimentamos
na gestação. De fato, diversas religiões, mitologias e contos, assim como
comportamento, parecem apontar para uma realidade anterior no tempo e, ademais,
na ordem do ser.
A busca incessante
do ser humano por algo que não experimentou, mas que intensamente deseja,
permeia as reflexões de inúmeros autores e grandes mestres ao longo da
história. Essa inquietação profunda leva a diversas conclusões, algumas das
quais remontam a ideias platônicas, sugerindo que buscamos na atualidade aquilo
a que tivemos acesso em um "outro mundo". Outras correntes de
pensamento sugerem que nossa busca está enraizada nas experiências da gestação,
um período misterioso que precede nossa entrada neste mundo.
O filósofo grego
Platão, em suas obras, especialmente em "A República", introduz a
teoria das Ideias, propondo que a realidade sensível que percebemos é apenas
uma sombra das formas perfeitas e eternas que existem em um plano
transcendental. Assim, a busca do ser humano seria uma tentativa de recuperar
aquilo que conhecemos em um estado anterior, uma realidade mais autêntica e
pura. Essa perspectiva lança luz sobre a natureza da busca humana, sugerindo
que estamos constantemente em busca de algo que conhecemos em um estado prévio
de existência.
No contexto das
religiões e mitologias, encontramos narrativas que corroboram essa ideia. A
mitologia grega, por exemplo, traz a história de Orfeu, que em sua busca por
Eurídice no submundo busca resgatar algo que foi perdido. De maneira
semelhante, o mito do Jardim do Éden na tradição judaico-cristã sugere uma
condição anterior à queda, onde a humanidade experimentava uma harmonia
perdida. Esses relatos mitológicos refletem a busca constante por algo que
transcende a experiência atual.
Na esfera
psicológica, a teoria de Carl Jung sobre o inconsciente coletivo lança luz
sobre a ideia de que há imagens e símbolos profundamente enraizados na psique
humana, provenientes de experiências arquetípicas compartilhadas ao longo da
evolução. Esses arquétipos, como o símbolo da mãe, podem remontar à experiência
primordial da gestação, sugerindo que nossa busca está enraizada nas
profundezas do inconsciente coletivo.
A obra "O
Livro Vermelho", de Carl Jung, é uma exploração fascinante desses temas,
onde o autor mergulha em seu próprio inconsciente para compreender os símbolos
e imagens que moldam a psique humana. Jung, ao abordar a busca do ser humano,
destaca a importância de reconhecer e integrar esses aspectos arquetípicos para
alcançar uma compreensão mais profunda da existência.
A relação entre a
busca humana e a gestação também encontra eco em obras como "A Origem da
Tragédia", de Friedrich Nietzsche, onde o autor explora a dualidade
apolínea e dionisíaca como forças fundamentais na experiência humana. A
gestação, com sua mistura de criação e destruição, pode ser vista como uma
metáfora para essas forças opostas que moldam nossa existência.
Ao refletir sobre
a busca humana por algo além da experiência presente, é crucial considerar a
obra do antropólogo Mircea Eliade, especialmente "O Sagrado e o
Profano". Eliade explora a ideia de que as sociedades humanas buscam
constantemente reconectar-se com um tempo mítico primordial, onde a sacralidade
permeia a realidade cotidiana. Essa busca por transcendência e retorno a uma
realidade primordial pode ser interpretada como uma expressão da busca humana
por algo que foi experimentado em um estado prévio de existência.
A fantasia do
paraíso perdido
O
retorno ao êxtase
Praticamente todos
os povos têm alguma menção a algum período anterior – em um tempo mítico - do
qual as coisas se deram, assim como do qual fundamentam sua vida. Por exemplo,
os hebreus fizeram menção a um período adâmico. Nele a humanidade se reduzia a
uns poucos – Adão e Eva. Nesse período, anterior ao pecado, a vida era marcada
por um poderoso senso de preenchimento e plenitude. Os gregos antigos falavam
em homens da era de ouro, assim como nos hiperbóreos. Nesse contexto,
importa-nos pensar que no plano da vida individual ou, ainda, social, os homens
sempre fizeram menção ao passado como, geralmente, local de origem, purê e
retorno. Nesse horizonte de contextualização é que iremos agora pensar no que
consiste o mito do paraíso perdido através de uma chave de leitura
psicanalista.
Pierre Weil (19...
- 20...) irá mostrar que o humano se caracteriza, mesmo no comportamento mais
simplório e banal do cotidiano, por uma incessante procura da felicidade, da
alegria, de viver e de paz, assim como, para atingir esse horizonte, procura o
prazer e foge da dor. Através dessa atitude, atrelado às mitologias, sistemas e
religiões que nos mostram e prometem o estado de bem-aventurança, está situado
o enraizamento na memória de um estado de plenitude e de êxtase permanente de
onde se retira tal desejo.
Nos situamos,
pois, como se tivéssemos uma lei inscrita no âmago de nosso ser: somos feitos
para a alegria e não para o sofrimento.
Retornamos ao
êxtase quando procuramos sensações agradáveis de toda natureza: ver e
contemplar a paisagem, a beleza da arquitetura, a harmonia da matemática, o
conhecimento científico, o sabor das frutas e demais iguarias; assim como nas
trocas das carícias sexuais: o escoar a mão pelo corpo, o beijo, o beijar os
seios, a penetração; assim como o cheiro do perfume das rosas; o riso expresso
em nós ao ver um bebê fofinho rir, assim como na pura e simples (e rara) busca
pelo amor amante frente ao convívio. Além da procura – em alguns – incessante
por conhecimento, pela pesquisa, pela publicação, pela experimentação científica.
Apesar desse
permanente impulso humano à felicidade, há inúmeros obstáculos no qual a grande
maioria se perde. Primeiro, pois nenhuma dos prazeres duram para além de
seu ato. Não havendo permanência de estados mentais, rapidamente o prazer se
vai – e ficamos ou com o tédio, ou com o sofrimento ou, ainda, na posição de
quem carece do retorno ao prazer perdido e, como cada ato é descontínuo, ainda
que haja condições materiais de se manter indefinidamente no prazer, uma hora
temos de voltar a rotina e, assim, a festa acaba.
O que é algo
paradoxal e dramático, pois feito para a felicidade, o homem, no entanto,
experimenta mais a infelicidade.
Apesar de nossa
insatisfação, podemos – mesmo que provisoriamente, através, por exemplo, de
bolhas psicossociais – ocultar tal insatisfação. Uma vida que já não tem
necessidades vitais em carência e, pois, suprimiu tais necessidades, algo
demasiadamente comum em sociedades desenvolvidas, podemos suprimir a
insatisfação através do luxo, do mimo, da moda e, enfim, de inúmeras
futilidades. Elas são, em nossa época, por conta de sua capacidade de suspender
a insatisfação, expressões de riqueza e leveza. A partir disso Pierre Weil
(19...) diz: “..esta satisfação é transitória e é justamente o caráter de
impermanência do prazer a ela ligado, que provoca um apego à memória do prazer
cujo caráter fantasmático abastece a natureza do desejo”. Ou seja, agora
falando rapidamente em desejo, o que direciona e organiza a lógica do desejo é,
primeiro, a impermanência, visto que ela ativa a memória a armazenar imagens
mentais sobre o objeto prazeroso; em segundo lugar, ao fixar o objeto
prazeroso, dá ao desejo seu objeto. Nesse contexto, o desejo deseja aquilo que
dá prazer. Sendo este a dimensão fisiológica do querer ou desejar.
Não obstante, para
além da possibilidade de episodicamente suspendermos o caráter da insatisfação
frente às coisas, em algum momento nos damos conta – ainda que brevemente – do
que está acontecendo. Através disso, compreendemos que nossa condição é a de quem
está numa posição existencial marcada por uma oscilação mais ou menos regular
entre prazer-desprazer, ou ainda, satisfação-insatisfação. Portanto, que a
felicidade permanente não se encontra. Não temos acesso a mesma num no vestir,
no alimentar-se, na segurança, no poder, no conhecimento, no encontro erótico,
na embriaguez da juventude.
“Nosso sistema
sócio-econômico de consumo exagerado de segurança, de sensações e de poder,
embora tenha diminuído em grande parte a miséria da insuficiência de satisfação
de necessidades vitais, não forneceu a felicidade que os regimes políticos nos
prometeram, sobretudo caso daqueles que já atingiram o nível de conforto de um
rei ou de um imperador, como existiam antigamente, e em nome do qual foram
feitas e continuam a serem feitas revoluções sangrentas Pierre Weill (WEIL,
19…)”
Não queremos
através disso negar a importância dos recursos econômicos. Importa-nos pontuar
que paralelamente seja necessário mostrar de modo integral (não parcial) como
repensar o problema da felicidade, bem-estar para além do ciclo vicioso da
insatisfação e, portanto, melhor lidar com a nossa negatividade. Negatividade
essa expressa em Weil através da metáfora do “paraíso perdido” (homônimo de
John Milton).
O que consiste em tudo isso?
Para compreender o
conceito de fantasia segundo Pierre Weil, devemos entendê-la como uma crença
ingênua na realidade aparente, ou seja, um baixo índice perceptivo do que
realmente é. Weil descreve o psiquismo operando através de ficções mentais e
ilusões psicossociais que, no entanto, têm capacidade de operar no mundo real.
Podemos pensar nessas fantasias como software autoprogramáveis, ou seja,
programas psicossociais que se formam espontaneamente, sem um programador
externo.
Todos os sistemas
interpretativos seriam autoformações ou, ainda, programas psicossociais (ou
software psicossociais). A neurose do paraíso perdido descrita por Weil está
intimamente relacionada com a vontade de inverdade, uma questão elucidada ao
final.
Como toda neurose,
na perspectiva psicanalítica, a neurose do paraíso perdido tem sua origem na
infância. Weil procura explicar, com base em Freud, a origem etiológica tripla
das neuroses, que têm fatores biológicos, filogenéticos e psicológicos.
No âmbito
biológico, a união do feto com sua mãe durante a gestação é uma das fontes da
neurose, pois o útero é geralmente o local mais seguro e confortável para um
organismo. A separação da mãe, esse primeiro vínculo, é traumática e nos
predispõe a procurar novamente esse "paraíso". A busca pelo paraíso
perdido, portanto, seria uma expressão de uma memória profunda.
No âmbito
filogenético, a neurose se relaciona com traços, engramas ou memórias desse
passado longínquo da humanidade, acessados através de sessões de regressão,
hipnose, etc. Em um segundo momento, a neurose se relaciona com os traços
deixados pela memória coletiva – religiões, mitos, costumes, histórias,
linguagem.
No âmbito
psicológico, a neurose do paraíso perdido é pensada como um conflito egóico
entre as demandas de prazer do Id e as de dever do Superego. O Ego procura,
frente à realidade do mundo exterior, atender a várias demandas, especialmente
as pulsionais, que exigem prazer. Dependendo do contexto, esse conflito pode
instalar uma neurose, ou seja, uma instabilidade psicossocial.
Segundo Weil,
esses fatores são suficientes, com base em diversos estudos transculturais,
para mostrar que todos os povos têm uma demanda estrutural por retorno ao tal
paraíso perdido. No budismo, por exemplo, isso é conhecido como Nirvana. Assim,
todos os povos e, portanto, todas as pessoas, têm uma neurose/fantasia de
alcançar um lugar ou estado no qual possam viver de modo pleno, isento de males
e contradições, e embebedado pelo êxtase divino.
Weil sugere que a
busca pela felicidade e por sensações agradáveis de todos os tipos – ver e
contemplar formas humanas, o corpo humano, cenas agradáveis do cinema, saborear
iguarias deliciosas, trocar carícias sensuais, o orgasmo, cantar ou ouvir
música, sentir o perfume das flores e o cheiro do corpo feminino (no caso dos
homens) – assim como a busca pelo amor genuíno, a curiosidade intelectual e o
gosto pela pesquisa, são modos de procura por acessar essa dimensão secreta do
ser, esse "paraíso" perdido.
A partir disso,
fica claro por que a humanidade se orienta pelo princípio do prazer tanto
quanto possível e é tão afinada à vontade de inverdade (minha alcunha). É
justamente essa vontade de inverdade – expressa nas três fantasias fundamentais
do humano: a fantasia do sujeito (crença na existência real de um Ego), a
fantasia do objeto (crença de que os objetos são realmente como nos parecem
ser) e a fantasia da relação de objeto (crença na separatividade do
sujeito-objeto e dos demais objetos entre si) – que viabiliza a manutenção das
fantasias psicossociais ligadas aos erros lógicos, metafísicos e psicológicos,
bem como ao princípio do prazer.
A Fantasia da Separatividade e suas
Ramificações
Weil sugere que
existe uma fantasia de separatividade do humano, que ele busca recompor. Essa
fantasia seria secundária a três outras primárias: a fantasia do sujeito, que
nos faz crer na existência real de um Ego; a fantasia do objeto, que consiste
na crença de que os objetos à nossa vista e mão são realmente como nos parecem
ser; e a fantasia da relação de objeto, que nos induz a crer na separatividade
do sujeito-objeto e dos demais objetos entre si. Essas fantasias criam uma
percepção ilusória da realidade, sustentando o que Weil chama de "neurose
do paraíso perdido".
Para
compreendermos melhor essas fantasias, podemos usar a noção de complexidade de
Edgar Morin. Morin argumenta que a realidade é composta por múltiplos níveis e
dimensões que se inter-relacionam de maneira complexa e inseparável. Assim, as
fantasias descritas por Weil são parte de um sistema complexo de crenças e
percepções que moldam nossas ações e interações sociais.
Em minha opinião,
a filosofia budista também oferece uma perspectiva valiosa ao considerar essas
fantasias como formas de ignorância (avidya), que nos mantêm presos ao ciclo de
sofrimento (samsara). O budismo ensina que a verdadeira natureza da realidade é
interdependente e impermanente, e que nossas percepções de separatividade e ego
são ilusórias.
O Jogo de Vida e Morte
Sumariamente, o
jogo de vida e morte consiste numa disputa velada entre os homens, assim como
num acordo subliminar e social, no estabelecimento de regras e posições sociais
– ou seja, hierarquias e diferenças – que viabilizam essa procura pelo paraíso
perdido tradicionalmente radicado no poder, no dinheiro e no prazer. Examinar a
luta pelo poder, a avareza e a cobiça humana revela como esses impulsos estão
enraizados na vontade de inverdade, isto é, na Vontade (schopenhaueriana)
mesma: na essência cosmopsicológica do mundo.
A
Luta pelo Poder
A busca pelo poder
é um dos principais motores da ação humana, refletindo a vontade de inverdade
ao criar e sustentar hierarquias sociais e políticas. A hierarquia militar e de
Estado exemplifica isso, onde a estrutura de poder é rigidamente mantida e defendida.
Um exemplo contemporâneo é o regime de Kim Jong-un na Coreia do Norte, onde o
poder absoluto é mantido através da força, repressão e controle da informação,
sustentando uma fantasia de separatividade e superioridade.
A Procura Universal por Prazer
A busca universal
pelo prazer se manifesta em diversas formas, todas ligadas ao princípio do
prazer, a Vontade e à fantasia de inverdade. Essa procura é evidente em
comportamentos como a prostituição, relações extraconjugais, consumo de
pornografia e outros atos que buscam gratificação imediata. Esses
comportamentos refletem a tentativa de acessar um "paraíso perdido"
de satisfação contínua.
Freud
e princípio do prazer
A psicanálise,
desde sua origem, tem se destacado por sua capacidade de investigar o que o ser
humano obscurece ou não expressa diretamente, mas inevitavelmente revela
através de suas ações e comportamentos. Essa abordagem pode ser comparada ao
olhar de um caçador atento aos movimentos de sua presa. A psicanálise examina a
mente humana sob múltiplos ângulos, focando em aspectos como a neurose, que se
revela não apenas como uma psicopatologia, mas também como um estudo dos
movimentos lógico-psicológicos que condicionam não apenas a neurose, mas também
o erro de julgamento.
Antes de
aprofundar na psicanálise, é essencial definir e contextualizar o conceito de
vontade de inverdade. Em termos sumários, a vontade de inverdade pode ser vista
como o correlato e contraponto à vontade de verdade, um conceito criticado por
Nietzsche. A vontade de verdade, na visão nietzschiana, é a busca incessante
pelo conhecimento objetivo e pelas "verdades" do mundo,
frequentemente em detrimento das experiências subjetivas e instintivas. Essa
vontade de verdade tem uma correspondência com o princípio de realidade de
Freud, que se refere à adaptação e resposta realista às demandas do mundo
externo.
Por outro lado, a
vontade de inverdade pode ser entendida como análoga ao princípio do prazer em
Freud. O princípio do prazer refere-se ao desejo inato de busca pelo prazer
imediato e evitação de qualquer forma de desconforto. Ele está associado às
pulsões e aos impulsos instintivos presentes no inconsciente e busca a
gratificação instantânea dos desejos e necessidades, sem considerar as
consequências ou a viabilidade realista dessas ações. Esse princípio opera
através do processo primário do pensamento, que é ilógico, não linear e não
cronológico.
Contrastando com
isso, o princípio da realidade é um princípio adaptativo que surge com o
desenvolvimento psicológico. Ele representa a compreensão gradual da realidade
externa e das limitações impostas pelo mundo ao nosso redor. O princípio da
realidade busca adiar a gratificação, levando em conta as restrições do
ambiente, a necessidade de planejamento e a tomada de decisões ponderadas. Este
princípio é guiado pelo processo secundário do pensamento, que é lógico, linear
e orientado para a realidade (a qual, a título de passagem, corresponde ao
Sistema 1 de Kahneman, ou seja, ao pensamento lento).
A fundamentação
dos princípios do prazer e da realidade pode ser entendida através da tópica e
do modelo econômico propostos por Freud. A tópica refere-se à estrutura da
mente, dividida em três instâncias: o id, o ego e o superego. O id é a parte
mais primitiva e governada pelo princípio do prazer, representando os impulsos
e desejos irracionais. O ego é responsável por mediar entre o id e o mundo
externo, buscando atender às demandas do id de forma realista e adaptativa,
seguindo o princípio da realidade. Por fim, o superego representa a
internalização das normas e valores sociais, que impõem restrições e
influenciam as escolhas do ego.
No modelo
econômico, Freud utiliza uma analogia com um sistema de energia. Ele sugere que
a mente possui uma quantidade limitada de energia psíquica, chamada de
"carga libidinal". Essa energia é distribuída entre diferentes
processos mentais e é constantemente mobilizada e transformada. O princípio do
prazer busca descarregar essa energia de forma imediata, enquanto o princípio
da realidade visa gerenciar e distribuir essa energia de maneira eficiente,
levando em conta as demandas externas e internas.
A vontade de
inverdade, portanto, pode ser vista como uma inclinação a ignorar a realidade
em favor do prazer imediato. Essa dinâmica é observada na formação de neuroses
e outras psicopatologias, onde o indivíduo pode negar aspectos da realidade que
são dolorosos ou desconfortáveis ou insatisfatórios, preferindo uma visão
distorcida que oferece alívio temporário. No entanto, essa negação da realidade
frequentemente resulta em conflitos internos e sofrimento, uma vez que a
energia psíquica é mal gerida e as demandas do id não são equilibradas de forma
adequada pelo ego.
A psicanálise
investiga esses processos para entender como o sujeito organiza e unifica suas
experiências. A partir da compreensão de Freud sobre a mente humana, podemos
ver como a verdade emerge no horizonte do sujeito.
Nesse contexto,
destaca-se que que há uma comunhão entre a noção de Vontade schopenhaueriana,
vontade de inverdade, segundo este meu conceito, e princípio do prazer em
Freud.
Schopenhauer
e Kant e o sujeito transcendental
Após discutirmos
as fantasias e o princípio do prazer, ou mesmo a vontade segundo Schopenhauer,
abordaremos rapidamente Schopenhauer e Kant, destacando a possibilidade de a
verdade ser apreendida pela razão. Isso se relaciona com o que Freud, de certa
forma, denomina princípio da realidade, através do exame lógico da formação do
sujeito transcendental. Em termos simples, isso se refere às condições prévias
ou a priori que possibilitam qualquer representação mental.
Assim, em
Schopenhauer e Kant, sem a unidade do sujeito, não seria possível ter
consciência, lógica, gramática ou qualquer representação do mundo. O princípio
da razão suficiente e a causalidade são fundamentais nesse contexto, pois sem
eles não poderíamos chegar a algo como a verdade ou mesmo a mentira. A verdade,
portanto, é uma construção que se baseia no sujeito transcendental kantiano de
organizar suas percepções e experiências de forma coerente. Em resumo, o
sujeito transcendental organiza a sensopercepção.
Schopenhauer, ao
desenvolver sua filosofia, também toca nesses temas ao discutir o papel do
sujeito na formação da realidade. Em "O Mundo como Vontade e
Representação", ele argumenta que o mundo é percebido de duas maneiras:
através da vontade e da representação. As coisas se manifestam tanto pela
vontade irracional quanto pela forma como são representadas na mente do
sujeito. A vontade, sendo atemporal e caótica, permeia todas as coisas e é a
força motriz por trás das ações e eventos do mundo.
Schopenhauer
destaca que a vontade não é boa nem má, mas simplesmente irracional. Essa visão
contrasta fortemente com os filósofos otimistas de sua época, como Hegel, que
viam a história e a realidade como um processo racional e progressivo.
Schopenhauer, com seu pessimismo característico, vê a busca pela felicidade
como algo fútil, pois a felicidade é apenas uma breve interrupção no constante
fluxo de dor e sofrimento que caracteriza a existência.
A influência de
Schopenhauer se estendeu além da filosofia, impactando a psicologia e a
psicanálise. Freud, em particular, foi influenciado pela visão de Schopenhauer
sobre os impulsos irracionais que governam o comportamento humano. A ideia de
que somos movidos por forças inconscientes e irracionais é central tanto na
filosofia de Schopenhauer quanto na teoria psicanalítica de Freud.
A unidade do
sujeito, portanto, é fundamental para a formação da verdade. Sem essa unidade,
não há como estabelecer um critério para a verdade ou falsidade, pois tais
conceitos dependem da estrutura racional que o sujeito impõe à sua experiência.
Através do estudo da psicanálise, podemos compreender melhor como a mente
humana lida com a tensão entre a busca pelo prazer imediato e a necessidade de
enfrentar a realidade, e como isso influencia nossa percepção da verdade e
nossa capacidade de viver de maneira satisfatória e integrada.
Funcionamento
da lógica cínica
Para fins de
explicação do funcionamento do cinismo iremos ter de passar pela compreensão
preliminar de ideologia, assim como, posteriormente, da linguagem, em sentido
de demonstrar que a ideologia não é capaz de explicar o erro, a ilusão, a
origem do sofrimento nem da exploração em nossa época.
Ideologia
O conceito de
ideologia, segundo Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Piris Martins, e
Marilene Chaui, pode ser compreendido de diversas maneiras, todas elas voltadas
para a análise crítica das estruturas sociais e dos discursos que sustentam
essas estruturas.
Para Aranha e
Martins, a ideologia é um sistema de ideias que serve para explicar e
justificar a realidade social. Esse sistema é composto por um saber sistemático
que é ao mesmo tempo explicativo e normativo. Ele atua para manter as práticas
de exploração ao fazer uso de lacunas, abstrações e universalidades. As lacunas
são partes omitidas ou negligenciadas do discurso ideológico que ocultam as
verdadeiras relações de poder e exploração. As abstrações generalizam e
distorcem a realidade concreta, enquanto as universalidades apresentam
interesses particulares como se fossem interesses universais. Desse modo, a
ideologia legitima a exploração ao encobrir as relações de dominação e
apresentar a ordem social como natural e imutável.
Acrescenta-se a
essa compreensão o conceito de inversão, no qual a origem da desigualdade
social é atribuída às diferenças individuais, e não à exploração da mais-valia.
Essa inversão ideológica faz com que os problemas sociais sejam percebidos como
falhas ou méritos pessoais, ocultando assim as causas estruturais e sistêmicas
da desigualdade. Por exemplo, o sucesso ou o fracasso de um indivíduo é
atribuído a sua capacidade ou incapacidade pessoal, ignorando o papel das
condições socioeconômicas e das estruturas de poder na determinação dessas
trajetórias.
Além disso, Chaui
discute a ideologia como um saber instituído e instituinte. O saber instituído
refere-se ao conhecimento já estabelecido, que é aceito e reproduzido pela
sociedade como um todo. Esse saber naturaliza as relações de poder e dominação.
Por outro lado, o saber instituinte é aquele que questiona e desafia o saber
instituído, buscando revelar as contradições e as verdadeiras relações de
exploração escondidas pela ideologia dominante. Esse saber é essencial para a
transformação social, pois promove a consciência crítica e a ação política
contra as estruturas opressivas.
Nesse contexto,
observamos basicamente relações ilusórias e contraditórias decorrentes de uma
classe dominante sobre uma classe dominada. Entretanto, o problema, conforme
mencionado no primeiro parágrafo, não reside exatamente nas diferenças práticas
entre essas classes. Embora essas diferenças sejam fundamentais, elas não
explicam, por exemplo, por que as pessoas são maldosas ou causam sofrimento aos
outros. Talvez nossa tentativa de explicação se baseie em entender o problema
da crueldade, do mal e da exploração a partir de uma visão biopsicossocial.
Nesse sentido, é
importante destacar que a falsa consciência, seja ela ideológica ou não,
tornou-se um problema secundário. O problema primário é o cinismo. No cinismo,
temos a falsa consciência esclarecida, ou seja, as pessoas já estão cientes da
ideologia e do que estão fazendo, seja bem ou mal, atitudes antiéticas, morais
ou imorais. Contudo, elas não modificam seu comportamento, justificando-se com
argumentos como: "Quem sou eu para me opor ao sistema? Não fui eu que
criei as regras do jogo, sou obrigado a aceitá-las." O notável nisso tudo
é a indiferença com que essas questões são tratadas, sem nenhum tipo de
resistência.
Nesse contexto,
queremos apontar que tanto a ideologia quanto o cinismo dependem de elementos
mais fundamentais, muitas vezes ligados à biologia. Segundo a psicanálise,
busca-se resgatar o êxtase da vida intrauterina, de modo que nossos
direcionamentos fundamentais quanto à satisfação estão ligados ao prazer, ao
saber, ao conhecimento e ao poder. Esses traços são comuns entre as diversas
classes sociais, mas há diferentes enfoques sobre essas fantasias. Para
realizar essas fantasias e satisfazer seus desejos, as pessoas,
individualmente, em grupo ou socialmente, muitas vezes dispõem-se a serem mal
educadas, desrespeitosas, agressivas, exploradoras e manipuladoras. No fundo, o
que importa não é exatamente como o sistema funciona, mas como cada um de nós
se posiciona diante desse sistema. Certas condutas são mais difíceis de serem
alcançadas em determinados grupos sociais, famílias ou sistemas. Por exemplo,
pode ser difícil para um operário sobreletrado ou analfabeto, que vive do
trabalho braçal, desenvolver certa sensibilidade, senso estético ou refinamento
conceitual, embora seja possível ter discernimento conceitual sem conhecimento
formal.
Nesse contexto,
como será abordado na próxima sessão, tentaremos desvendar o mecanismo de funcionamento
do cinismo a partir da linguagem. Somos orientados por fantasias, e essas
fantasias nos direcionam à hostilidade, à maldade e à crueldade. O sistema, em
minha opinião, é formado a partir de certos interesses derivados dessas
fantasias, que podem não ter uma origem intrinsecamente maligna, mas que, para
se realizarem, necessitam passar por questões malignas. Isso ocorre porque
nenhuma dessas fantasias está originalmente ligada a uma fantasia moral, por
exemplo, onde o indivíduo se compromete com o outro.
Nesse sentido, o
eixo orientador da vida é sempre o "eu", que se manifesta primeiro na
família, nos filhos, nos cônjuges e nos pais. Em seguida, é encarnado talvez na
comunidade mais imediata, na vida religiosa e no estado. São sempre círculos maiores
de corporificação do "eu", cada um com valores e interesses
determinados.
Destina-se
a proteção psicossocial:
O cinismo,
entendido como uma falsa consciência esclarecida (Sloterdijk), pode ser
analisado como uma obstrução do campo de visão ou compreensão daquilo que está
à vista ou em questão, favorecendo certas conveniências pessoais, sociais,
coletivas, culturais e outras. Este cinismo manifesta-se por meio de uma
linguagem insincera, que distorce a realidade em prol de interesses
específicos. No contexto da proteção psicossocial, o cinismo atua para manter o
status quo, utilizando-se dos seguintes elementos:
1. Conveniências:
O cinismo protege conveniências ao justificar atitudes e comportamentos que
beneficiam determinados grupos ou indivíduos, mascarando suas verdadeiras
intenções. Ele cria uma fachada de racionalidade e inevitabilidade, escondendo
as motivações egoístas por trás de decisões que muitas vezes são prejudiciais
para a coletividade.
2. Utilidade: A
utilidade, no contexto do cinismo, refere-se ao uso pragmático da linguagem e
da ideologia para alcançar objetivos específicos. A linguagem cínica manipula
significados e referenciais para tornar certas práticas e políticas socialmente
aceitáveis, mesmo quando são injustas ou imorais. A distorção da verdade é
justificada pela suposta utilidade dessas práticas para o bem-estar social ou
econômico.
3. Poder: O
cinismo é uma ferramenta poderosa na manutenção de relações de poder. Ele
desvia a atenção das verdadeiras fontes de injustiça e desigualdade, culpando
indivíduos ou grupos marginalizados. Dessa forma, os detentores do poder podem
continuar a explorar e oprimir sem enfrentar resistência significativa. A
linguagem cínica reforça hierarquias sociais e econômicas, apresentando-as como
naturais e inquestionáveis.
4. Linguagem: A
linguagem cínica desempenha um papel crucial na articulação das conveniências,
utilidades e relações de poder. Ela manipula a relação entre signo, significado
e referente, escamoteando o sentido original das palavras e conceitos. Por exemplo,
termos como "liberdade" e "democracia" podem ser usados
para justificar políticas repressivas, enquanto a "igualdade" pode
ser invocada para disfarçar a perpetuação de desigualdades estruturais.
A linguagem
cínica, ao distorcer e manipular os significados, obstrui a compreensão clara
dos fenômenos sociais e políticos. Isso cria um ambiente onde a insinceridade
prevalece, e a verdade é subjugada aos interesses de quem detém o poder. A
proteção psicossocial proporcionada pelo cinismo é, portanto, uma forma de
manutenção do status quo, que impede a transformação social ao mascarar as
verdadeiras causas dos problemas e promover a aceitação passiva das condições
existentes.
Linguagem
O
que é linguagem?
A linguagem é um
fenômeno complexo e multifacetado que permeia todas as esferas da atividade
humana, sendo fundamental para a comunicação, a expressão de pensamentos e
emoções, e a construção de identidades culturais e sociais. Diversos autores
consagrados da linguística e da semiologia contribuíram para a compreensão de
suas características e partes constitutivas. Entre esses autores destacam-se
Ferdinand de Saussure, Noam Chomsky, Roman Jakobson, e Charles Sanders Peirce,
cujas teorias oferecem diferentes perspectivas sobre a natureza e o
funcionamento da linguagem.
Ferdinand
de Saussure e a Linguística Estrutural
Ferdinand de
Saussure é amplamente reconhecido como o fundador da linguística moderna. Em
sua obra *Curso de Linguística Geral*, ele propõe uma abordagem estruturalista
para o estudo da linguagem, focando nas relações internas entre os elementos
linguísticos. Para Saussure, a unidade
básica da linguagem é o signo linguístico, que consiste de duas partes: o
significante (a forma sonora ou gráfica) e o significado (o conceito ou ideia).
Ele introduz o conceito de arbitrariedade do signo, afirmando que não há uma
relação intrínseca entre o significante e o significado; essa relação é
estabelecida por convenção social. Além disso, Saussure enfatiza a importância
das relações sintagmáticas (combinatórias) e paradigmáticas (substitutivas) no
funcionamento da linguagem, mostrando como os signos ganham significado a
partir de suas diferenças e oposições dentro do sistema linguístico.
Noam
Chomsky e a Gramática Gerativa
Noam Chomsky
revolucionou a linguística com sua teoria da gramática gerativa, que desloca o
foco da estrutura superficial das línguas para as regras profundas que governam
a produção e a compreensão das sentenças. Em seu livro *Syntactic Structures*,
Chomsky introduz o conceito de competência linguística, que se refere ao
conhecimento tácito que os falantes têm das regras gramaticais de sua língua.
Chomsky propõe que
todas as línguas humanas compartilham uma estrutura subjacente comum,
denominada gramática universal. Esta gramática universal é um conjunto de
princípios e parâmetros inatos que configuram a aquisição da linguagem. A
partir desse ponto de vista, a linguagem é vista como uma capacidade cognitiva
específica do ser humano, com uma estrutura altamente organizada e regras
generativas que permitem a criação de um número infinito de sentenças a partir
de um conjunto finito de elementos.
Roman
Jakobson e as Funções da Linguagem
Roman Jakobson, um
dos principais representantes do formalismo russo e do Círculo Linguístico de
Praga, contribuiu significativamente para a compreensão das funções da
linguagem. Em seu ensaio *Closing Statement: Linguistics and Poetics*, Jakobson
identifica seis funções principais da linguagem, cada uma associada a um
elemento do ato comunicativo:
1. Função
Referencial: Relaciona-se ao contexto e ao conteúdo informativo da mensagem.
2. Função Emotiva:
Expressa atitudes, emoções e estados internos do emissor.
3. Função
Conativa: Focada no receptor, busca influenciar seu comportamento ou resposta.
4. Função Fática:
Destinada a estabelecer, prolongar ou interromper a comunicação, como em
saudações e despedidas.
5. Função
Metalinguística: Refere-se ao código em si, permitindo explicações e
esclarecimentos sobre a própria linguagem.
6. Função Poética:
Enfatiza a forma da mensagem, predominante na literatura e na poesia, onde a
estética e a construção do texto são centrais.
Charles
Sanders Peirce e a Semiótica
Charles Sanders
Peirce, um dos fundadores da semiótica, amplia o estudo da linguagem para
incluir todos os tipos de signos e processos de significação. Ele classifica os
signos em três categorias principais:
1. Ícone: Um signo
que se assemelha ao objeto que representa, como uma fotografia.
2. Índice: Um
signo que está diretamente conectado ao seu objeto por uma relação causal ou
física, como fumaça indicando fogo.
3. Símbolo: Um
signo cuja relação com seu objeto é arbitrária e estabelecida por convenção,
como as palavras na linguagem.
Para Peirce, a
semiose (o processo de significação) é triádica, envolvendo um signo, um objeto
e um interpretante (o conceito ou entendimento que o signo gera na mente do
intérprete). Essa abordagem permite uma análise mais abrangente dos processos
comunicativos, incluindo a linguagem verbal e não-verbal, e enfatiza a
dinamicidade da interpretação dos signos.
Características
e Partes da Linguagem
A linguagem possui
várias características que a tornam única entre as formas de comunicação. Entre
essas características destacam-se:
- Arbitrariedade:
A relação entre os signos e seus significados é arbitrária e baseada em
convenções sociais.
- Dualidade: A
linguagem opera em dois níveis simultâneos: o nível dos sons (ou grafemas) e o
nível dos significados.
- Produtividade: A
capacidade de gerar um número infinito de sentenças novas a partir de um
conjunto finito de regras e palavras.
- Deslocamento: A
habilidade de comunicar sobre coisas que não estão presentes no tempo e no
espaço.
- Culturalidade: A
linguagem é transmitida culturalmente e é fundamental para a construção e
manutenção das identidades culturais.
A linguagem é um
sistema complexo e multifacetado, essencial para a comunicação humana e a
construção social. Autores como Saussure, Chomsky, Jakobson e Peirce oferecem
perspectivas complementares que nos ajudam a entender suas características e
partes constitutivas. A partir dessas abordagens, podemos apreciar a riqueza e
a diversidade da linguagem, bem como seu papel central na vida humana.
Como
a linguagem representa a sociedade e cultura?
A linguagem é
essencial para o entendimento e a representação da sociedade e da cultura. Ela
serve como uma porta de entrada para o mundo, permitindo que os indivíduos
comuniquem pensamentos, construam identidades e interajam socialmente. Para que
a linguagem funcione de forma eficaz, é necessário que exista uma aceitação
social das convenções linguísticas, além de uma base racional que possibilite a
inteligibilidade das mensagens transmitidas. Sem essa racionalidade, a
linguagem perde seu sentido, tornando-se incapaz de trazer à consciência a
existência ou presença de objetos na mente humana. Nesse sentido, a linguagem
tem a capacidade de fixar elementos móveis em formas estáveis de ideias, uma
característica que está profundamente ligada às dinâmicas culturais e sociais.
A linguagem surge,
então, como um elemento fundamental na possibilidade de interação entre os
indivíduos e na estruturação da ordem social. Em muitos casos, ela é até mesmo
confundida com a própria realidade. Isso levanta a questão de que, ao falarmos
de realidade, mundo, verdade ou conhecimento, talvez estejamos, na verdade,
falando sobre linguagem. À medida que a linguagem representa a sociedade e a
cultura, ou que a sociedade e a cultura são apresentadas pela linguagem,
percebemos que o acesso às experiências objetivas do mundo exterior só é
possível por meio de uma certa linguagem que permite essa apreensão
fenomenológica e mental.
Além disso, à
medida que expandimos a linguagem sobre um objeto, aumentamos também nossa
compreensão desse objeto. Por exemplo, em sociedades que possuem mais palavras
para designar cores, há uma percepção mais ampla dessas cores. O mesmo acontece
com comportamentos ou propriedades objetais: quanto mais palavras existem para
descrevê-los, maior é nossa capacidade de compreensão e explicação desses
fenômenos. Diante disso, podemos concluir que a linguagem representa a
sociedade e a cultura à medida que os signos linguísticos permitem a
representação mental dessa sociedade e cultura para os indivíduos que as
integram. Essa relação é dinâmica, com causalidades não lineares, recursividade
e múltiplas perspectivas envolvidas.
Pensamento
Concreto e Pensamento Abstrato
A compreensão da
linguagem pode ser aprimorada ao distinguir entre pensamento concreto e
pensamento abstrato. O pensamento concreto está relacionado às experiências
sensoriais e imediatas. Ele lida com objetos tangíveis e situações específicas,
facilitando a interação direta com o ambiente. Por exemplo, ao observar uma
árvore, o pensamento concreto reconhece suas características físicas, como cor,
forma e textura.
Por outro lado, o
pensamento abstrato envolve a manipulação de ideias e conceitos que não estão
diretamente ligados à experiência sensorial imediata. Esse tipo de pensamento
permite a generalização e a reflexão sobre questões mais amplas. Utilizando o
mesmo exemplo, o pensamento abstrato sobre uma árvore pode incluir conceitos
como ecologia, crescimento, e ciclo de vida, extrapolando para ideias sobre
meio ambiente e sustentabilidade.
A linguagem
desempenha um papel crucial na transição entre esses dois tipos de pensamento.
Ela fornece as ferramentas necessárias para transformar experiências concretas
em conceitos abstratos, permitindo a comunicação e a reflexão sobre ideias
complexas e multifacetadas. Isso é fundamental para o desenvolvimento
intelectual e cultural, pois permite a transmissão de conhecimentos acumulados
e a construção de novas compreensões do mundo.
Estrutura
da Linguagem e Formação da Percepção
A estrutura da
linguagem impacta significativamente a formação da percepção individual e
social. O vocabulário, os conceitos e os códigos sociais que uma língua oferece
moldam a forma como os indivíduos percebem e interpretam a realidade. Essa
relação entre linguagem e percepção pode ser analisada a partir de diversas
perspectivas, incluindo a teoria da relatividade linguística de Benjamin Lee
Whorf e Edward Sapir, que sugere que as características da língua influenciam a
forma como seus falantes percebem o mundo.
Por exemplo,
diferentes idiomas categorizam cores de maneiras distintas. Algumas línguas
possuem múltiplos termos para descrever variações de uma cor específica,
enquanto outras utilizam um único termo para uma ampla gama de matizes. Isso
pode afetar a sensibilidade dos falantes para distinguir entre essas cores. Da
mesma forma, a presença ou ausência de certos conceitos em uma língua pode
facilitar ou limitar a capacidade de seus falantes de compreender e discutir
determinadas ideias.
Vocabulário
e Cognição Social
O vocabulário de
uma língua é uma ferramenta poderosa que influencia a cognição social. Palavras
carregam significados que refletem e perpetuam valores culturais e sociais.
Termos pejorativos, elogiosos, neutros ou técnicos moldam atitudes e
comportamentos. Por exemplo, a terminologia usada para descrever grupos sociais
pode reforçar estereótipos e preconceitos ou promover respeito e igualdade. O
vocabulário também influencia a percepção de papéis sociais e identidades,
afetando como indivíduos se veem e são vistos pelos outros.
Além disso, certos
conceitos e metáforas recorrentes em uma língua podem estruturar o pensamento e
a ação. George Lakoff e Mark Johnson, em seu trabalho sobre metáforas
cognitivas, argumentam que metáforas comuns, como "tempo é dinheiro",
moldam a forma como as pessoas pensam sobre e gerenciam seu tempo. Essas
construções linguísticas influenciam decisões diárias e a compreensão de
conceitos mais abstratos.
Códigos
Sociais e Percepção Individual
Os códigos sociais
presentes na linguagem determinam normas e expectativas de comportamento dentro
de uma comunidade. Eles estabelecem o que é considerado apropriado ou
inapropriado, influenciando a maneira como as pessoas interagem. Esses códigos
são aprendidos e internalizados desde cedo, tornando-se uma parte fundamental
da identidade e da percepção individual.
Por exemplo,
formas de saudação, expressões de respeito e modos de discurso variam
significativamente entre culturas e refletem valores sociais subjacentes. Em
algumas culturas, o uso de títulos e formas honoríficas é essencial para
mostrar respeito, enquanto em outras, uma abordagem mais direta e informal é
valorizada. Esses códigos moldam a percepção de hierarquias sociais e relações
interpessoais.
Percepção
de Mundo e Identidade
A linguagem não
apenas estrutura a percepção de objetos e eventos, mas também desempenha um
papel central na construção da identidade individual e coletiva. Ela é o meio
pelo qual as pessoas expressam suas experiências, sentimentos e pensamentos, e
através do qual constroem e comunicam suas identidades. A forma como alguém
fala, incluindo o uso de dialetos, sotaques, gírias e registros formais ou
informais, contribui para a percepção de si mesmo e dos outros.
Narrativas
compartilhadas, mitos, histórias e discursos políticos moldam a compreensão
coletiva de eventos históricos e realidades sociais. Esses elementos
linguísticos criam uma visão de mundo compartilhada que influencia atitudes,
valores e ações. Eles podem unir ou dividir grupos sociais, promover a coesão
ou gerar conflito.
Em suma, a
linguagem é uma ferramenta essencial que molda a percepção, a cognição e a
identidade. Ao permitir a transição entre pensamento concreto e abstrato, ela
facilita a comunicação e a reflexão sobre o mundo. A estrutura da linguagem,
incluindo vocabulário, conceitos e códigos sociais, influencia a forma como os
indivíduos e as sociedades percebem e interpretam a realidade. Portanto, a
linguagem é não apenas um meio de comunicação, mas também um poderoso agente na
formação da percepção e da identidade, tanto individual quanto coletiva.
A manipulação dos signos
A manipulação da
linguagem, dos signos e dos significados é uma prática comum que pode ter
profundas implicações na percepção social, na construção de identidades e na
compreensão do mundo. A linguagem, por sua natureza arbitrária, permite uma
flexibilidade que pode ser usada tanto para esclarecer quanto para enganar.
Neste contexto, a manipulação dos signos é uma ferramenta poderosa que pode ser
usada para ocultar significados, criar novos sentidos e influenciar a percepção
das pessoas. A análise dessa manipulação requer uma compreensão profunda das
relações entre signo, significante e significado, bem como das dinâmicas
sociais que sustentam essas práticas.
Estrutura do Signo Linguístico
De acordo com
Ferdinand de Saussure, o signo linguístico é composto por dois elementos: o
significante (a forma sonora ou gráfica) e o significado (o conceito ou ideia).
A relação entre significante e significado é arbitrária, ou seja, não há uma
conexão natural entre a palavra e o objeto ou ideia que ela representa. Isso
permite uma grande flexibilidade na forma como os signos podem ser usados e
interpretados.
Manipulação dos Signos
A manipulação dos
signos envolve a alteração da relação entre significante e significado, de modo
a influenciar a interpretação de um dado conceito ou objeto. Isso pode ocorrer
de diversas formas:
1.
Recontextualização: A mudança do contexto em que um signo é usado pode alterar
seu significado. Por exemplo, termos técnicos podem ser utilizados fora de seu
contexto original para impressionar ou confundir o público. O uso de jargões
especializados em discursos políticos ou comerciais pode obscurecer a verdade
ou criar uma impressão de autoridade.
2. Eufemismos e
Disfarces: Substituir palavras ou expressões por outras que têm uma conotação
mais suave ou neutra é uma maneira de manipular o significado. Governos e
corporações frequentemente utilizam eufemismos para suavizar a percepção de
ações controversas, como referir-se a "danos colaterais" em vez de
"mortes de civis".
3. Ambiguidade e
Vaguidade: A linguagem ambígua ou vaga pode ser usada para evitar compromissos
claros e permitir múltiplas interpretações. Isso é frequentemente observado em
discursos políticos, onde declarações vagas permitem a adaptação a diferentes audiências
sem a necessidade de posicionamentos claros.
4. Redefinição:
Alterar deliberadamente o significado de palavras é uma forma de manipulação.
Por exemplo, conceitos como "liberdade" ou "democracia"
podem ser redefinidos para servir a interesses específicos, desviando-se de
seus significados tradicionais e criando novas conotações que favorecem certas
agendas políticas.
Impacto da Manipulação na Percepção
A manipulação dos
signos e dos significados pode ter um impacto profundo na percepção individual
e social. Ela pode moldar opiniões, influenciar comportamentos e determinar a
forma como as pessoas interpretam a realidade. A seguir, exploramos alguns dos principais
impactos dessa manipulação:
1. Formação de
Ideologias: Ideologias são sistemas de ideias que justificam e sustentam
determinadas práticas e estruturas de poder. A manipulação dos signos é
essencial para a formação e perpetuação de ideologias, pois permite a criação
de narrativas que legitimam a ordem social existente. Por exemplo, a retórica
de meritocracia pode ser usada para justificar desigualdades sociais ao sugerir
que elas são resultado de diferenças individuais de esforço e talento,
ocultando as estruturas sistêmicas de exploração.
2. Controle
Social: A manipulação da linguagem é uma ferramenta eficaz de controle social.
Governos e instituições podem usar a manipulação dos signos para controlar a
informação e moldar a opinião pública. A propaganda é um exemplo clássico, onde
a repetição de mensagens simplificadas e emocionalmente carregadas pode
influenciar as atitudes e crenças da população.
3. Desinformação e
Fake News: A disseminação de informações falsas ou enganosas depende da
manipulação dos signos. A desinformação pode alterar a percepção da realidade,
criando confusão e desconfiança. Isso é particularmente perigoso em contextos
onde a verdade factual é essencial, como na saúde pública ou na política.
Exemplos de Manipulação
Para ilustrar como
a manipulação dos signos opera na prática, consideremos alguns exemplos:
- Jargões
Técnicos: No contexto empresarial, o uso de jargões técnicos pode ser uma forma
de manipulação. Um executivo pode usar termos como "sinergia",
"alavancagem" ou "paradigma" para comunicar uma sensação de
complexidade e competência, mesmo quando a mensagem subjacente é simples ou
vazia. Esse uso do jargão pode confundir os ouvintes e impedir o questionamento
crítico.
- Política e
Propaganda: Em campanhas políticas, a manipulação dos signos é uma estratégia
comum. Um candidato pode usar slogans e frases de efeito para simplificar
questões complexas e criar uma imagem positiva de si mesmo. Por exemplo,
slogans como "Esperança e Mudança" podem evocar sentimentos positivos
sem fornecer detalhes concretos sobre políticas específicas.
- Eufemismos na
Mídia: A mídia frequentemente usa eufemismos para reportar eventos de maneira
que suavize o impacto emocional. Termos como "intervenção militar" em
vez de "invasão" ou "reformas econômicas" em vez de
"cortes de gastos" são usados para moldar a percepção pública e
minimizar a resistência.
A
mentira e seu papel social
A linguagem é uma
ferramenta complexa e multifacetada que vai além da simples nomeação de objetos
e compreensão do mundo. Ela desempenha um papel crucial na comunicação, na
construção de identidades e na interação social. Uma de suas funções, menos
frequentemente discutida mas igualmente importante, é a capacidade de ocultar,
manipular e distorcer a realidade. Nesse contexto, a mentira emerge como um
fenômeno significativo que serve a várias funções sociais e individuais. Pierre
Weil e Sigmund Freud oferecem perspectivas valiosas para entender como a
mentira se relaciona com a realização de desejos pessoais e a adaptação às
conveniências sociais.
A
Função Social da Mentira
A mentira pode ser
vista como uma estratégia de comunicação que manipula a percepção de outra
pessoa ou grupo para servir a certos interesses. Embora muitas vezes condenada
moralmente, a mentira possui funções sociais importantes. Ela pode suavizar a
realidade, amortecer o impacto da verdade e evitar conflitos. Em muitas
situações, a verdade nua e crua pode ser dolorosa ou desestabilizadora. A
mentira, nesse sentido, funciona como um mecanismo de proteção, tanto para o
mentiroso quanto para o receptor da mentira.
Pierre Weil, em
suas obras sobre a psicologia da comunicação, argumenta que a mentira é uma
forma de criar uma realidade alternativa que permite ao indivíduo lidar com
situações difíceis ou desconfortáveis. Nesse contexto, ele sugere que a mentira
pode ser uma maneira de "amortecer" o impacto da verdade, tornando-a
mais palatável. Por exemplo, em contextos sociais onde a verdade pode causar
sofrimento desnecessário, uma mentira pode ser utilizada para manter a harmonia
e o bem-estar.
Manipulação
e Conveniência
Além de suavizar a
realidade, a mentira também é uma ferramenta poderosa de manipulação nas mais
diversas dimensões. Ela pode ser usada para influenciar o comportamento e as
decisões de outras pessoas, ajustando-as às conveniências e interesses do
mentiroso. Seja em contextos pessoais, empresariais ou políticos, a mentira
pode ser empregada para alcançar objetivos específicos.
Em ambientes
corporativos, por exemplo, a manipulação da verdade pode ser usada para
proteger a imagem da empresa, esconder falhas ou promover produtos de maneira
enganosa. Da mesma forma, em relações pessoais, a mentira pode ser utilizada
para manter uma fachada, esconder fraquezas ou conquistar benefícios. A
manipulação, nesse caso, não é apenas uma questão de ocultar a verdade, mas de
criar uma narrativa que sirva aos interesses do mentiroso.
A
Realização das Fantasias Pessoais
Pierre Weil também
explora como a mentira pode ser uma ferramenta para a realização de fantasias
pessoais. Ele descreve como os indivíduos podem usar a mentira para criar uma
versão idealizada de si mesmos ou de suas circunstâncias. Essa versão idealizada
pode ser uma forma de lidar com a insatisfação ou frustração em relação à
realidade. Ao mentir, o indivíduo constrói uma narrativa que se alinha com seus
desejos e expectativas, proporcionando uma sensação temporária de realização.
O Princípio do Prazer e Freud
Sigmund Freud
oferece uma perspectiva complementar através de sua teoria do princípio do
prazer. Segundo Freud, o princípio do prazer é a força motriz que impulsiona os
indivíduos a buscar gratificação imediata e evitar a dor. A mentira, nesse
contexto, pode ser vista como uma manifestação do princípio do prazer. Ao
distorcer a realidade, a mentira permite que o indivíduo evite confrontar verdades
dolorosas e busque uma satisfação momentânea.
Freud, de certo
modo, argumenta que o inconsciente desempenha um papel crucial na formação das
mentiras. Muitas vezes, as mentiras não são planejadas de maneira consciente,
mas emergem como uma resposta automática para proteger o ego de ameaças
externas. Essa proteção pode envolver a repressão de verdades desagradáveis ou
a projeção de desejos inconscientes em uma narrativa aceitável.
A Coesão entre Mentira, Prazer e
Manipulação
A relação entre a
mentira, o princípio do prazer e a manipulação social é complexa e
interdependente. A mentira pode ser vista como uma ferramenta que permite ao
indivíduo navegar entre as exigências da realidade e os desejos internos. Ela
oferece uma forma de criar um equilíbrio entre a busca pelo prazer e a
necessidade de adaptação às conveniências sociais.
Por exemplo, em um
cenário onde a verdade pode causar um conflito significativo, a mentira pode
ser usada para manter a paz e a harmonia. Isso não apenas protege o indivíduo
de uma dor imediata, mas também manipula a percepção dos outros para criar um
ambiente mais favorável. Assim, a mentira se torna uma estratégia para alcançar
um equilíbrio entre os desejos pessoais e as demandas sociais.
Obstrução do feio no humano
A condição humana
é marcada por uma constante busca de realização, moldada por desejos
primordiais que remontam às nossas primeiras experiências de prazer,
frequentemente associadas ao êxtase uterino. Desde cedo, tentamos recriar essas
fantasias de prazer através do poder, do conhecimento e das posses. Porém,
nossos interesses, inclinações e cobiças muitas vezes entram em conflito com o
bem-estar alheio, resultando em um ambiente social onde a luta de todos contra
todos, descrita por Thomas Hobbes, se torna prevalente. Nesse contexto, a
linguagem desempenha um papel crucial não só na comunicação e na compreensão,
mas também na distorção da verdade para mascarar essa feiura intrínseca à
condição humana. A mentira, então, assume um papel estético, suavizando a
realidade e tornando a crueldade humana mais palatável.
A Natureza Humana e a Busca de Realização
Como já delineado,
Sigmund Freud, em sua teoria psicanalítica, argumenta que os seres humanos são
movidos por desejos inconscientes que se originam das primeiras experiências de
prazer. Esses desejos moldam nossas fantasias e influenciam nosso comportamento
ao longo da vida. A busca pelo poder, pelo saber e pelas posses são
manifestações dessas fantasias primordiais. Conforme crescemos, tentamos
satisfazer esses desejos através de diferentes meios, muitas vezes em
detrimento dos outros.
O Homem como Lobo do Homem
Thomas Hobbes, em
sua obra *Leviatã*, descreve a vida no estado de natureza como "solitária,
pobre, sórdida, brutal e curta". Ele argumenta que, sem a imposição de uma
autoridade superior, os seres humanos estão em um estado constante de guerra de
todos contra todos. Hobbes vê a natureza humana como intrinsecamente egoísta e
competitiva, o que leva à necessidade de um contrato social para garantir a paz
e a segurança.
Essa visão
hobbesiana sugere que o mundo humano é, em nossos termos, essencialmente
cínico, cruel e marcado pela luta incessante por vantagens pessoais. A
linguagem, nesse contexto, não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas
também um meio de manipulação e ocultação da verdade.
A Estética da Mentira
A mentira, como
uma forma de manipulação linguística, pode ser vista como uma expressão
artística que transfigura a feiura humana em algo mais aceitável. Friedrich
Nietzsche, em *Além do Bem e do Mal*, argumenta que os seres humanos têm uma
necessidade inata de beleza e ordem, mesmo que isso signifique distorcer a
verdade. Para Nietzsche, a mentira pode ser uma forma de criar uma ilusão
necessária para suportar a realidade dura e caótica.
Michel Foucault,
em seus estudos sobre o poder e a verdade, sugere que a verdade é
frequentemente construída e manipulada por aqueles em posições de poder para
manter seu domínio. Em *A Ordem do Discurso*, Foucault explora como os
discursos são usados para controlar e definir a realidade, sugerindo que a
"verdade" socialmente imposta é, em muitos casos, uma construção
estratégica. Nesse sentido, a mentira pode ser vista como uma ferramenta para
moldar a percepção e manter a ordem social.
A Função da Mentira na Sociedade
A mentira,
portanto, serve a múltiplas funções sociais e individuais. Ela pode proteger o
ego, evitar conflitos, manter a harmonia social e permitir a realização de
desejos pessoais. Ao mascarar a verdade, a mentira suaviza a feiura intrínseca
da condição humana, criando uma realidade mais palatável e esteticamente
agradável.
Kant, em sua obra
*Fundamentação da Metafísica dos Costumes*, argumenta que a moralidade deve ser
baseada em princípios universais e que a mentira é, em si, imoral. No entanto,
por razões particulares, convenções sociais ou, ainda, conveniências, os indivíduos
ou particulares, assim como as grandes instituições podem contestar e, ademais,
deformar os fatos ainda que sejam autoevidentes ou, ainda, necessidades da
razão humana (consoante o que dissemos sobre o sujeito transcendental kantiano)
A Dialética da Verdade e da Mentira
Platão, em *A
República*, explora a ideia de que a verdade pode ser difícil de alcançar e que
as aparências muitas vezes enganam. O mito da caverna, uma das alegorias mais
famosas de Platão, ilustra como os seres humanos podem estar presos a ilusões e
falsas percepções da realidade. Nesse contexto, a mentira pode ser vista como
uma continuação dessas ilusões, uma forma de manipular as sombras na parede da
caverna para criar uma realidade mais confortável.
Jean-Paul Sartre,
em *O Ser e o Nada*, discute a má-fé, ou autoengano, como uma forma de lidar
com a angústia existencial. Sartre argumenta que os seres humanos
frequentemente mentem para si mesmos para evitar confrontar verdades
desconfortáveis sobre sua própria existência. A mentira, nesse sentido, é uma
forma de escapar da responsabilidade e da liberdade inerentes à condição
humana.
O
que não se pode dizer?
Vivemos em uma
sociedade onde a comunicação é essencial para a coexistência pacífica e
produtiva. No entanto, essa comunicação é frequentemente regulada por normas
sociais que ditam o que pode ou não ser dito. Muitas dessas normas servem para
mascarar verdades inconvenientes que, se expostas, colocariam em xeque nossa
moralidade, ideologias e interesses pessoais. Este texto explora algumas dessas
verdades silenciadas e as razões pelas quais são censuradas. É nesse contexto
que podemos evocar a máxima cartesiana: “Para saber o que as pessoas realmente
pensam, preste atenção no que elas fazem, e não no que elas dizem.”
– René Descartes
Intenções
Egoístas e Práticas de Exploração
Uma das principais
áreas de censura envolve nossas intenções egoístas e práticas de exploração. O
desejo de poder, a ambição desenfreada e a colocação dos interesses pessoais
acima do bem coletivo são realidades que preferimos não admitir abertamente. Estas
intenções egoístas, muitas vezes, levam a práticas de exploração econômica,
sejam dos particulares entre si, ou das instituições aos particulares, e
manutenção de desigualdades sociais. Discutir abertamente como exploramos os
outros para benefício próprio desafia a narrativa de uma sociedade justa que
muitos de nós, por mais algum tempo, ainda queremos acreditar que existe.
Falhas
Morais e Vulnerabilidades
Outro conjunto de
verdades frequentemente silenciadas envolve nossas falhas morais e
vulnerabilidades. A hipocrisia, a desonestidade e a corrupção são
comportamentos comuns que preferimos não revelar. Além disso, nossos medos de
fracasso, inseguranças pessoais e fragilidades emocionais são aspectos que
mantemos escondidos para proteger nossas autoimagens. Admitir essas fraquezas
pode levar à perda de respeito e de status social, além de expor a realidade de
que todos somos imperfeitos e sujeitos a falhas.
Comportamentos
Antiéticos e Contradições Ideológicas
A manipulação e o
engano consciente são comportamentos antiéticos que muitos praticam, mas poucos
admitem. Usamos a linguagem e outras formas de comunicação para manipular
percepções e moldar realidades que nos favorecem. Além disso, as contradições
ideológicas são frequentemente ocultadas. Por exemplo, muitos pregam ideais
elevados de justiça e igualdade, mas na prática, agem de maneira contrária a
esses ideais. Essas contradições colocam em cheque a autenticidade de nossas
crenças e discursos.
Interesses
Econômicos e Desigualdades Estruturais
Os interesses
econômicos ocultos são outra área onde a verdade é frequentemente mascarada. A
ganância corporativa e os lucros a qualquer custo são realidades que preferimos
não discutir abertamente. Além disso, as desigualdades estruturais, como o
racismo institucional, o sexismo e a homofobia, são frequentemente minimizadas
ou negadas. Admitir essas realidades exigiria uma reavaliação radical de nossas
estruturas sociais e econômicas, algo que muitos preferem evitar.
Abusos
de Poder e Danos Ambientais
Finalmente, os
abusos de poder e os danos ambientais são verdades que são frequentemente
silenciadas. A violência policial, o autoritarismo e a censura governamental
são práticas que desafiam a imagem de um estado justo e democrático. Da mesma
forma, os danos ambientais causados pela destruição ecológica, poluição
industrial e mudanças climáticas são questões que muitos preferem negar ou
minimizar para evitar a responsabilidade e as mudanças necessárias para a
sustentabilidade.
Reações
à Crítica
Quando expomos e
criticamos comportamentos inescrupulosos, frequentemente encontramos
resistência e reações adversas. Essas reações são compreensíveis, dado que a
crítica pode ameaçar a autoimagem, expor vulnerabilidades e desafiar o status
quo. A seguir, exploramos algumas das principais razões pelas quais as pessoas
podem se opor à denúncia de seus comportamentos, incluindo acusações de
cinismo, ressentimento e imaturidade.
1. Defesa da Autoimagem
Uma das razões
mais fundamentais para a resistência à crítica é a necessidade de proteger a
autoimagem. Os seres humanos tendem a se ver de maneira positiva e justificam
seus comportamentos através de mecanismos de defesa. Quando confrontados com
críticas que expõem comportamentos antiéticos ou egoístas, as pessoas podem
reagir defensivamente para manter uma imagem de si mesmas como justas e morais.
Cuja reação é: "Quem faz essas críticas é apenas um cínico."
Ao rotular o
crítico como cínico, a pessoa criticada desvia a atenção de seus próprios
comportamentos e questiona a moralidade ou as intenções do crítico. Isso
permite que ela mantenha sua autoimagem intacta sem precisar confrontar as
críticas.
2. Medo de Consequências Sociais
A denúncia de
comportamentos inadequados pode ter consequências sociais significativas.
Admitir falhas ou comportamentos antiéticos pode levar à perda de status,
respeito e oportunidades. O medo dessas consequências pode motivar uma
resistência vigorosa à crítica. Cuja reação geralmente é: "Esse tipo de
pensamento é puro ressentimento."
Aqui, a acusação
de ressentimento serve para desqualificar a crítica, sugerindo que ela é
motivada por inveja ou frustração pessoal, em vez de ser uma avaliação justa e
objetiva. Isso protege a pessoa criticada das potenciais repercussões sociais.
3. Conservadorismo Psicológico
As pessoas têm uma
tendência natural a resistir a mudanças e a defender o status quo. O
conservadorismo psicológico é a inclinação de manter as crenças e
comportamentos existentes, minimizando a dissonância cognitiva e a necessidade
de adaptação. Cuja reação é: "Quem pensa assim é imaturo e não entende a
complexidade da vida."
Ao acusar o
crítico de imaturidade, a pessoa criticada reafirma a validade de suas próprias
crenças e práticas. Isso não só preserva o status quo, mas também invalida a
crítica como sendo ingênua ou simplista.
4. Mecanismos de Defesa Psicológica
Sigmund Freud
descreveu vários mecanismos de defesa que as pessoas utilizam para proteger seu
ego de ameaças. A crítica pode ser percebida como uma ameaça significativa,
desencadeando respostas defensivas como a negação, a projeção e a
racionalização. Cuja reação é: "Essas críticas são exageradas e não
refletem a realidade."
Negar a validade
da crítica ou projetar as próprias falhas nos outros são formas de defesa
psicológica. Racionalizar os comportamentos criticados, justificando-os com
argumentos lógicos superficiais, também serve para proteger o ego e evitar a
necessidade de mudança.
5. Conservação de Poder e Privilégio
Em muitos casos,
as críticas aos comportamentos inescrupulosos desafiam diretamente as
estruturas de poder e privilégio. As pessoas em posições de poder têm um
interesse em manter essas estruturas e podem reagir agressivamente a qualquer
ameaça percebida. Cuja reação é: "Essa crítica é apenas uma tentativa de
desestabilizar o sistema."
Ao acusar o
crítico de ter intenções subversivas, a pessoa criticada desvia a atenção dos
problemas estruturais e reforça a legitimidade do sistema existente. Isso ajuda
a manter o poder e os privilégios inalterados.
Assim, a crítica,
especialmente quando direcionada a comportamentos inescrupulosos,
frequentemente desencadeia reações adversas. As pessoas tendem a proteger sua
autoimagem, evitar consequências sociais negativas e manter o status quo. Essas
reações podem ser vistas através de várias respostas comuns.
Conclusão
Originalmente,
somos movidos por fantasias que nos impulsionam em busca de prazer, poder e
posses. No entanto, reconhecer essa motivação inicial não exclui completamente
a existência de algo como um sujeito transcendental, conforme delineado na
filosofia de Kant. Esse sujeito transcendental representa um substrato
pré-ontológico da racionalidade humana, conforme exposto na "Crítica da
Razão Pura". Assim, além da nossa sensibilidade e das nossas percepções
sensoriais, existe um componente cognitivo, a razão pura, que organiza e
interpreta os dados sensoriais de maneira a torná-los compreensíveis.
É precisamente por
essa estrutura cognitiva, ou pela emergência transcendental da cognição humana,
que se torna possível alcançar a verdade, ainda que essa verdade esteja sempre
vinculada ao campo fenomênico, isto é, à realidade como ela se manifesta para
nós.
Não se trata aqui
de abordar verdades absolutas, como a existência de Deus ou a vida após a
morte, mas de afirmar que nossa razão é capaz de compreender naturalmente
noções fundamentais sobre uma série de entidades físicas, sociais, psicológicas
e morais. Assim, a verdade, dentro dos limites em que se manifesta, torna-se
acessível à nossa compreensão.
Portanto, o
sujeito transcendental desempenha um papel crucial no acesso à verdade. Ele
funciona como uma categoria necessária e imediata de interpretação, verificando
internamente, a cada percepção sensorial, se o que se apresenta está submetido
a essa estrutura cognitiva fundamental.
Em nossa busca
pela felicidade, motivada pelo imperativo do amor-próprio, frequentemente somos
influenciados por inputs fantasiosos. Esses inputs, que nos orientam conforme
nossas inclinações, desejos, fantasias e necessidades psicofisiológicas, podem
nos levar, em certa medida, a distorcer os dados ou nosso próprio conhecimento,
de modo a concretizar nossos objetivos, seja por pressão social ou por vontade
própria. No entanto, essa distorção consciente dos dados não pode ser total,
pois, caso fosse, a farsa resultante invalidaria nossa
"legitimidade". Surge, então, a necessidade de um rearranjo
sociocultural, realizado por meio da linguagem, utilizando mecanismos como o
deslocamento de sentido e a reconfiguração dos elementos semióticos — signo,
significado, significante e referente — além de outros dispositivos de natureza
psicocínica e sociocínica.
Nesse contexto, o
cinismo emerge como um intermediário que obstrui o campo de visão, atuando como
um figurador entre o fenômeno externo e nossa Razão (Logos) ou cognição
interna. Em outras palavras, ele se posiciona entre a realidade externa e sua
representação mental interna.
O cinismo,
portanto, funciona como um dispositivo biopsicossocial que transcreve os dados
externos para o nosso mundo interior, subjetivo, a partir de nosso horizonte
biográfico e de valores, valores esses alinhados às nossas exigências
psicofisiológicas. Ao mesmo tempo, ele redesenha nosso mundo subjetivo em
relação a nós mesmos. Por exemplo, mesmo sabendo que algo é errado segundo
nossos próprios valores, o cinismo pode, gradualmente, alterar o sentido e o
significado desse algo, tornando-nos, aos poucos, mais tolerantes em relação
àquilo que inicialmente rejeitávamos. Nesse caso, o cinismo atua para atenuar o
sofrimento psicológico, sem necessariamente buscar vantagens pessoais, como
ocorre quando os dados sensoriais são transcriados de maneira conveniente.
É nesse cenário
que a verdade se torna problemática, pois ela tem o potencial de expor
contradições internas e externas, gerando uma série de problemas, tanto sociais
quanto psicossociais ou psicológicos. A verdade, ao ser revelada, pode criar um
turbilhão de conflitos, questionando as narrativas que sustentam nossa
identidade e a ordem social, e é por isso que muitas vezes ela é contestada ou
evitada.
Devemos, em
primeiro lugar, nos perguntar se existe uma lei moral de caráter universal.
Essa indagação refere-se, basicamente, à existência de princípios morais
fundamentais que determinam a conduta de seres racionais e dotados de vontade.
A resposta, de forma sucinta, é que sim, existe tal lei. Essa conduta geral é
sustentada pelo princípio da conservação, de natureza biológica, e, no plano
psicológico, está relacionada à busca da felicidade em virtude do amor próprio.
Assim, nossas ações, em condições normais e não patológicas, tendem a buscar a
realização da felicidade pessoal.
É por isso que
atos lesivos, sejam psicológicos ou físicos, representam um problema, pois
contrariam uma disposição natural dos seres inteligentes e racionais de
promover o próprio bem-estar. Ninguém age contra si mesmo por natureza; todos
buscamos nosso próprio bem. Além disso, ao procurarmos nosso próprio bem,
geralmente tentamos também preservar, em certa medida, o bem-estar alheio. Isso
pode ocorrer porque compreendemos que ninguém vive isolado e que nosso
bem-estar está, de alguma forma, interligado ao bem-estar daqueles que nos
rodeiam, seja no contexto familiar, nas amizades ou nas relações sociais mais
amplas.
Nesse cenário,
aqueles que formam opiniões ou emitem juízos para si mesmos buscam não apenas o
próprio bem, mas também a veracidade dessas opiniões. Mais uma vez, isso nos
leva ao problema da verdade. Quando alguém formula um juízo, como "o que é
achado não é roubado", "a natureza opera pela lei do mais
forte", "o homem deve ser forte e agir com malícia se
necessário" ou "tirar vantagem de todos é a melhor forma de
viver", essa pessoa acredita que tal juízo é verdadeiro. Não faria sentido
que alguém sustentasse para si algo que considera falso ou enganoso, pois
todos, dentro dessa lei moral universal, procuram aquilo que é bom e que pode
realizar o propósito final de suas vidas, que é a felicidade e o amor próprio.
Embora existam
diferentes formas de entender o caminho para a felicidade, refletindo diversos
modos de avaliação e diferentes horizontes de valores, o ponto de partida e o
objetivo final são os mesmos: a busca pela felicidade e pela autoconservação,
guiada por uma necessidade originária de amar a si mesmo.
Quando as pessoas
são confrontadas com seus valores, opiniões, juízos e interpretações por
outras, especialmente em situações onde o erro ou a inverdade são claramente
expostos, essa confrontação pode gerar uma resposta hostil. Isso ocorre porque,
ao serem desafiadas, as pessoas se veem obrigadas a reavaliar todo o seu
processo de pensamento, revisar conceitos e até mesmo alterar hábitos e
comportamentos. Além disso, essa mudança pode implicar na perda de certos
privilégios ou vantagens psicossociais que antes eram sustentados por crenças
equivocadas. Nesse contexto, surgem discursos relativistas e pluralistas que,
de certa forma, promovem uma perspectiva niilista, na qual nada é considerado
verdadeiramente fundamental ou basilar. Esses discursos permitem que o
indivíduo funcione à revelia de sua própria razão e dos fatos, ignorando a
verdade em favor de conveniências pessoais.
A ideologia,
inserida nesse mesmo contexto, atua como um mecanismo de justificativa para
ideias, juízos, pensamentos ou práticas, mesmo que essas justificativas
contenham lacunas, contradições ou erros evidentes. A ideologia, por sua
natureza, pode inclusive validar elementos imorais, que direta ou indiretamente
causam dano a outras pessoas. No cotidiano, a verdade se apresenta como um
problema justamente por seu potencial lesivo: ela tem a capacidade de expor
aquilo que as pessoas escondem de si mesmas e da sociedade, revelando aspectos
de egoísmo, cinismo, mentiras e hipocrisia que muitos preferem não enxergar.
As reações
violentas, hostis e intensas contra aqueles que pronunciam a verdade não servem
para refutar a falsidade, mas, paradoxalmente, reforçam a veracidade do
enunciado que provocou tal reação. Quando uma pessoa é confrontada, seja em uma
conversa, em redes sociais, ao ler um livro, assistir a um programa de TV,
ouvir uma música ou consumir qualquer outro tipo de conteúdo, e se vê
profundamente perturbada a ponto de sentir angústia, ansiedade ou irritação,
essa resposta emocional é frequentemente um sinal de que o enunciado atingiu
uma verdade incômoda. Essa reação intensa indica uma resistência interna à
necessidade de rever conceitos, ideias e valores arraigados.
É importante notar
que, para algumas pessoas, o reconhecimento da verdade não representa um
problema, desde que possam continuar vivendo de maneira conveniente e
confortável. Para elas, o desconforto não surge porque já possuem uma
pré-compreensão do mundo como um espaço de relativismo, onde a realidade é
vista como uma arena de luta de forças e onde a funcionalidade prática
prevalece sobre a busca pela verdade. Essas pessoas podem adotar a perspectiva
de que, embora a verdade seja "A", para sobreviver e prosperar na
sociedade, é necessário ignorá-la em favor de uma prática cotidiana que permita
operar com as realidades "B", "C" ou "D", pois o
mundo real não é visto como o espaço da verdade, mas sim da funcionalidade.
Algumas pessoas
acreditam que não há outra maneira de viver além de aceitar as falsidades de
suas vidas, justificando essa postura com a ideia de que qualquer tentativa de
agir de maneira diferente resultaria em prejuízos pessoais. Assim, elas se
conformam com a situação, sem sofrer com a falsidade, pois consideram que essa
é a única forma de preservar seu bem-estar e felicidade, que são os elementos
fundamentais que orientam sua vontade.
Nesse contexto,
essas pessoas não se veem como más ou problemáticas; pelo contrário, elas
acreditam ser possível viver uma vida falsa em relação aos fatos e à verdade, e
ainda assim se considerarem boas pessoas. Isso ocorre porque acreditam que têm
a capacidade de manejar suas ações de maneira a evitar causar sofrimento físico
ou psicológico a outras pessoas. Assim, elas concluem que podem viver uma vida
ética ou moral, mesmo que suas ações sejam, em alguns momentos, contrárias à
verdade ou aos fatos, inclusive em questões morais.
Essas pessoas
podem agir de maneira imoral em determinadas situações, mas tendem a acreditar
que, no conjunto, o somatório de suas ações é positivo. Por exemplo, se uma
pessoa comete oito atos bons e dois ruins, ela pode considerar que, no saldo
final, ainda está em vantagem moral. Essa perspectiva revela uma maturidade na
maneira como algumas pessoas lidam com suas contradições, desde que consigam
manejar corretamente essas questões. Entretanto, a maioria das pessoas não se
preocupa com esse tipo de balanço ético, agindo de forma mais egoísta, o que,
paradoxalmente, muitas vezes não leva à realização do fim que procuram — a
maximização de sua felicidade.
Em muitos casos,
essa postura egoísta pode ser contraditória, pois, ao buscar vantagem em tudo,
a pessoa pode acabar encontrando problemas que surgem justamente de suas
atitudes amorais ou imorais. Essa é uma apreciação cínica da realidade, onde o
indivíduo age como se o fim justificasse os meios, sem se preocupar com as
consequências éticas de suas ações.
Um ponto adicional
a ser considerado é a questão do inconsciente freudiano. Esse inconsciente
realmente existe? Autores como Paulo Ghiraldelli Júnior sugerem que o
inconsciente se inscreve mais como um campo conceitual do que como uma
realidade concreta. Esse conceito permite que se fale, de maneira não ostensiva
ou agressiva, sobre as contradições, cinismo, mentiras e hipocrisia. Coloca-se
a responsabilidade dessas questões não no "eu" consciente, mas em um
"outro" que habita dentro de nós. Assim, por exemplo, não seria
"eu" quem possui desejos lascivos, ganância ou maldade, mas uma
espécie de "outro" em mim, uma entidade inconsciente que atua de
forma dissociada do meu eu consciente. O inconsciente, então, seria um recurso
para se abordar socialmente o que não se pode falar diretamente.
Em resumo, o
cinismo é uma parte essencial do modo como a humanidade vive e sempre viveu,
atuando como um mecanismo de transcrição e ressignificação dos fenômenos para
que possam ser moldados de acordo com as fantasias primárias e os desejos
fundamentais que buscam a felicidade humana. Ao mesmo tempo, o cinismo expressa
a vontade de inverdade, que é um traço geral da vontade humana em qualquer
condição. Essa vontade de inverdade frequentemente se sobrepõe a demandas
morais que derivam de uma compreensão ontológica da racionalidade sobre o que
as coisas são e como funcionam. Essa compreensão pode ser distorcida em nome de
fins particulares ou coletivos, especialmente quando uma ordem cultural ou
social impõe normas que contradizem princípios morais fundamentais. Mesmo
diante de evidências claras de contradição, erro, mentira, hipocrisia e
manipulação, o indivíduo tende a não rejeitar essas condições, evidenciando
assim a prevalência da vontade de inverdade sobre certas necessidades
adaptativas ou evolutivas.
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