Por que a Verdade é um problema?

 

Afinal, há a Mentira?


Por que a Verdade é um problema?  

 

A humanidade tem dupla moral: uma que prega mas não pratica, outra que pratica mas não prega.

-Bertrand Russell 

Antes de responder a primeira pergunta, iremos problematizar a segundo, que será nosso fio condutor a primeira.  

Como que, realmente, se fundamenta os conflitos?

E minha opinião eles se fundam numa espécie de discordância entre pelo menos 2 fatores: Idiotia e natureza humana.  

Mas o que afinal é idiotia?  

Na Grécia Antiga, a palavra "idiota" (ἰδιώτης - idiōtēs) tinha um significado diferente do que tem hoje. Originalmente, na antiga Atenas, um "idiota" era alguém que não se envolvia na vida pública ou política da cidade-estado. O termo era usado para descrever uma pessoa que não participava das assembleias, debates políticos ou funções cívicas, mas que se preocupava apenas com seus próprios assuntos privados. 

Com o tempo, a conotação da palavra "idiota" mudou gradualmente. Durante a Idade Média e além, especialmente na era moderna, o termo começou a ser associado mais comumente a alguém que era considerado mentalmente inferior, sem instrução ou habilidades sociais. Essa mudança de significado reflete uma evolução na linguagem e na percepção social ao longo dos séculos. Assim, o termo que originalmente se referia à falta de participação política passou a denotar uma falta de habilidades intelectuais ou sociais. 

Na modernidade, "O Idiota" é uma obra-prima literária escrita por Fiódor Dostoiévski, publicada pela primeira vez em 1869. O protagonista, Príncipe Míchkin, é um homem honesto, ingênuo e bondoso, cuja característica principal é sua pureza e sua incapacidade de entender as complexidades da sociedade. Ele é chamado de "idiota" não por ser mentalmente incapaz, mas por sua falta de malícia e cinismo em um mundo cheio de intrigas e maldade. Míchkin é um personagem profundamente religioso e busca sempre o bem-estar dos outros, muitas vezes sacrificando seus próprios interesses. Sua inocência e bondade o tornam vulnerável aos jogos de poder e aos conflitos pessoais que permeiam a trama, revelando as contradições e os dilemas morais da sociedade russa da época. Assim, ele se constitui como "idiota" não por falta de inteligência, mas por sua pureza e sua incapacidade de se adaptar aos padrões sociais e às convenções hipócritas de sua época.  

No pensamento religioso, Jesus é frequentemente descrito como um "idiota sagrado" devido à sua abordagem contracultural e suas ações aparentemente irracionais aos olhos da sociedade da época. Sua idiotia está em sua maneira de desafiar as normas sociais e religiosas, pregando ideais de amor, perdão e compaixão em um contexto onde esses princípios muitas vezes eram contrariados pela rigidez da lei e das tradições.  

Já Dom Quixote, o personagem criado por Miguel de Cervantes, é um exemplo clássico de um "idiota idealista". Ele é retratado como um cavaleiro errante que busca realizar feitos heroicos em um mundo que não corresponde mais às ideias românticas de cavalaria. Sua idiotia reside em sua persistente crença em um código de honra ultrapassado e em sua propensão a ver a realidade de forma distorcida, transformando moinhos de vento em gigantes e simples camponeses em nobres cavaleiros.  

Em ambos os casos, a idiotia desses personagens está ligada à sua singularidade, à sua capacidade de ver além das convenções sociais e às suas ações que desafiam as expectativas convencionais, sejam elas motivadas pela espiritualidade e compaixão, como no caso de Jesus, ou por uma busca idealista e romântica por nobreza e aventura, como no caso de Dom Quixote.  

Uma vez comentado sobre o conceito de idiotia, iremos explorar o significado da natureza humana em relação a conceitos como pecado, vícios, fantasias e maledicência permite uma análise profunda das complexidades da condição humana, tanto em termos individuais quanto sociais.  

Irei destacar o problema consoante a algumas dimensões do negativo (ou negatividade humana).  

Primeiro, o pecado é um conceito profundamente enraizado em muitas tradições religiosas e éticas, e está ligado à ideia de violar leis divinas ou morais. Na concepção religiosa, a natureza humana é frequentemente vista como marcada pelo pecado original, uma herança da desobediência de Adão e Eva no jardim do Éden. Isso sugere que os seres humanos têm uma tendência inata para o mal e para agir contra os preceitos divinos. No entanto, perspectivas filosóficas e psicológicas também abordam o pecado como resultado das falhas humanas, como egoísmo, falta de empatia e inclinação para satisfazer desejos imediatos em detrimento do bem-estar de outros. Assim, a natureza humana, vista através da lente do pecado, revela uma complexa interação entre impulsos egoístas e aspirações éticas.  

Os vícios representam padrões de comportamento prejudiciais que podem se tornar arraigados na natureza humana. Eles surgem da busca por gratificação instantânea, muitas vezes às custas do bem-estar físico, emocional ou espiritual. Exemplos comuns de vícios incluem o abuso de substâncias, como álcool e drogas, comportamentos compulsivos, como jogo patológico, e hábitos prejudiciais, como a procrastinação crônica. A natureza humana, quando influenciada pelos vícios, revela a fragilidade da vontade e a propensão para cair em padrões autodestrutivos, apesar do conhecimento dos seus efeitos negativos. 

A maledicência, ou fofoca maliciosa, revela aspectos sombrios da natureza humana relacionados à comunicação e interação social. Esse comportamento muitas vezes emerge da inveja, ressentimento ou busca por poder social. A propensão para a maledicência sugere uma tendência para a negatividade e para diminuir os outros para elevar a própria posição. Revela também a vulnerabilidade das relações humanas à manipulação e à desconfiança. 

As fantasias são construções mentais que muitas vezes envolvem cenários imaginários, desejos ou aspirações que podem divergir da realidade. Embora as fantasias possam ser uma parte natural da experiência humana e servir como uma forma de escapismo ou fonte de inspiração criativa, elas também podem distorcer a percepção da realidade e levar a expectativas irrealistas. A natureza humana é, portanto, moldada por uma interação entre a necessidade de escapar das pressões da vida cotidiana e o desafio de permanecer conectado com a realidade e os compromissos práticos.

Nesse contexto, em termos gerais, a natureza humana refere-se à essência ou características fundamentais que definem o que é ser humano. Isso inclui aspectos como a capacidade de raciocínio, emoções, consciência, moralidade, sociabilidade e liberdade de escolha. A questão central é entender o que é inerente à condição humana, aquilo que é compartilhado por todos os seres humanos, independentemente de diferenças individuais, culturais ou históricas. 

A natureza humana, inegavelmente, é marcada pela luta entre o egoísmo e as aspirações altruístas. Esta dualidade intrínseca muitas vezes resulta em comportamentos prejudiciais aos outros e à sociedade como um todo. A solução para essa dicotomia pode ser encontrada na adoção de uma postura "idiota", como exemplificado por personagens como Míchkin ou Jesus. Essa abordagem preconiza uma vida baseada no respeito mútuo, no amor e na verdade, que, teoricamente, contraria o egoísmo. No entanto, paradoxalmente, se essa abordagem for efetivamente implementada, ela tende a contestar o próprio egoísmo.  

Como a humanidade, por várias razões, muitas vezes não consegue eliminar completamente o egoísmo, assim como suas fantasias de poder, conhecimento e prazer, acaba-se buscando um ponto médio: a gestão do egoísmo. Essa gestão envolve equilibrar as necessidades individuais com as necessidades coletivas, reconhecendo que o egoísmo não pode ser completamente erradicado, mas pode ser controlado e direcionado de maneira a minimizar seus efeitos negativos.  

Nesse contexto, a culpa emerge como uma força significativa, muitas vezes derivada da tensão entre a postura "idiota" e o egoísmo inerente à natureza humana. A angústia, por sua vez, pode ser entendida como uma fuga da postura idiota, ou seja, da recusa em assumir essa atitude de amor e generosidade. Essa recusa é, em grande parte, alimentada pela inospitalidade resultante do egoísmo, que cria uma atmosfera de "cada um por si".  

A propensão da humanidade ao egoísmo está intrinsecamente ligada à concepção de realidade, conforme delineado por Nietzsche em sua teoria da vontade de poder. Em contrapartida, a postura "idiota" baseia-se na escolha de adotar o amor como princípio orientador e verdade fundamental. No entanto, muitas vezes, as ações humanas que aparentam ser motivadas pelo amor revelam-se, na verdade, impulsos egoístas disfarçados. Isso ocorre porque as obrigações sociais e culturais frequentemente moldam nossas interações, em vez de escolhas verdadeiramente altruístas. 

Por exemplo, o cuidado materno pode ser percebido como uma expressão de amor genuíno, mas também está sujeito a questionamentos, à medida que se revela a presença do desamor materno em alguns casos. Assim, a dicotomia entre o egoísmo e a postura "idiota" lança luz sobre as complexidades da natureza humana e as tensões morais e psicológicas que dela decorrem.  

Na interseção entre uma atitude baseada no amor e um pedido baseado no poder, surge o dilema central da verdade em nossa era. Aqui, a verdade requer não apenas ser aceita, mas ser abraçada por completo, o que implica rejeitar o poder e adotar um ethos desprovido de vantagens mundanas comumente valorizadas. Este ethos, caracterizado por sua aparente idiotia, desafia as normas da sociedade ao negar os prazeres, ganhos materiais e poder em favor de um ideal ou fantasia. Embora socialmente positivo, esse posicionamento é simultaneamente visto como tolo, pois os santos, ascetas ou visionários que o adotam estão distantes da realidade marcada pelo cinismo e hipocrisia. Ao recusar participar desse jogo social, correm o risco de serem excluídos ou até mesmo mortos.  

Assim, a verdade se revela inatingível, pois sua aceitação implicaria na implosão das estruturas socioculturais existentes, ameaçando a própria natureza humana. Neste contexto, a verdade é sistematicamente obstruída em prol de interesses e conveniências pessoais e coletivas, demandando um amplo sistema psicossocial e político para manter as aparências e legitimar as ações individuais, independentemente de sua adequação ou legitimidade.  

Entretanto, essa liberdade desenfreada inevitavelmente resulta em violência e caos, desde crimes até corrupção. O Direito, dentre outras instituições, surge como um mecanismo para mitigar os efeitos colaterais desse aspecto inerentemente tumultuoso da natureza humana, fornecendo uma estrutura para a convivência e a resolução de conflitos dentro da sociedade.  

Sem dúvida, apresentar essa complexa interação entre amor e poder, idiotia e natureza humana, em toda sua clareza e simplicidade, revela-se tanto divino quanto patético. Surpreendentemente, poucos se aventuram a comentar sobre essa intricada questão, pois ela adentra um terreno incômodo e pouco explorado. Entretanto, tenho uma profunda apreciação pela arte do insulto, pois ela desafia as convenções e confronta as verdades estabelecidas.  

O cerne do problema do sofrimento reside na dicotomia entre amor e poder, assim como na tensão entre a idiotia e a natureza humana. Esta dualidade, por um lado, e o problema da verdade, por outro lado, estão intrinsecamente entrelaçados no tecido da existência. Emerge então a percepção de que é impossível denunciar completamente a natureza humana ou definir de forma radical a idiotia, pois tal empreendimento é considerado absurdo, um paradoxo insuperável. No entanto, essa negação de confrontar tais questões essenciais implica em riscos tanto individuais quanto sociais, pois todos os valores psicossociais estão arraigados em uma lógica de poder que, paradoxalmente, se manifesta como inversão. 

Assim, surge a perspectiva de que a humanidade possa um dia transcender essa lógica de poder, buscando a superação através da construção de uma sociedade utópica ou pelo exercício da Razão. Este caminho, embora desafiador, aponta para a possibilidade de desarticular as estruturas de poder vigentes, abrindo espaço para uma nova ordem baseada no amor, na compaixão e na verdadeira compreensão da natureza humana.  

Enquanto aguardamos essa transformação, o relativismo lógico, moral e antropológico serve a uma ordem sociopolítica estabelecida, independentemente de sua aderência à verdade absoluta. O que realmente importa é que ele funciona como uma ferramenta para moldar e sustentar uma determinada estrutura de poder. Esta estrutura busca aparentar ampliar a liberdade individual, ao mesmo tempo em que continua obscurecendo a verdadeira natureza das coisas até seus limites.  

A existência, mesmo que hipotética, de uma verdade absoluta impõe a necessidade de imposição de verdades relativas, pois a clareza proporcionada por uma verdade absoluta tenderia a restringir os desejos humanos, revelando as verdadeiras razões e propósitos que residem em nossos corações. No entanto, essa incapacidade de transcender a natureza humana resulta na produção do negativo e na sensação de impotência existencial. À medida que os seres humanos se adaptam ao ambiente e buscam sua liberdade, eles correm o risco de perder sua autenticidade, abandonando sua essência no processo. A aquisição e adaptação às necessidades mundanas, marcadas por fragilidades e inseguranças, podem suprimir ou mitigar sua capacidade de ser plenamente autêntico.  

Apesar dessa impotência de ser, a humanidade ainda tenta definir o certo e o errado, não com base em critérios estritos de qualidade, mas sim em um parâmetro quantitativo - a média. Assim, em uma espécie de curva média, onde a maioria se posiciona, o foco não reside tanto na qualidade intrínseca das coisas, mas sim em onde cada indivíduo se encaixa em relação a essas normas estabelecidas.  

A condição humana é inseparável da figura da Pobreza (Penia) [2], representando não apenas a carência material, mas também a pobreza nas capacidades de ser e na busca do que há de mais elevado na essência humana. É essa pobreza que corrompe o que consideramos como média, mediana, normal, típico e afins. Essa média, em sua descrição geral, reflete não apenas a falta de poder ser plenamente autêntico, mas também a impotência de ser verdadeiro. A presença de Penia, a deusa da pobreza na antiga mitologia grega, é uma lembrança constante da necessidade, da dificuldade e da falta de meios que permeiam a existência humana. Penia era odiada e marginalizada por todos os homens, mas paradoxalmente, o mal, a inverdade, o cinismo e a hipocrisia se tornam imperativos do ethos humano - qualquer desvio desses padrões é visto como uma ameaça aos jogos de poder estabelecidos [3].  

Assim, a verdade, em seu pleno sentido, ou seja, na dimensão ética, permanece e permanecerá sempre exilada, condenada ao ostracismo. Nesse contexto, qualquer visão otimista que proclame que o bem triunfa sobre o mal ou que a essência humana é intrinsecamente boa é considerada uma ilusão.  

 Uma grande bobagem!  

Tudo é permeado pelo cinismo, pela máscara, pela conveniência, pelo engano, pelo autoengano e pelo interesse (se olharmos para o discurso do inconsciente - isto é, para a vontade humana). No território da vontade de inverdade que é o espaço humano, não há espaço para a contemplação da verdade, pois ela é rejeitada pela maioria em sã consciência.  

Sim, dizer a verdade só piora as coisas!  

  

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  Thiago Carvalho, 18 de maio de 2024

[1] AA expressão "amor" foi escolhida por sua facilidade de compreensão e sua capacidade de estabelecer um contraste claro com o egoísmo. Carl Jung, um dos mais influentes psicólogos do século XX, reconheceu o amor como uma força oposta à "vontade de poder". A vontade de poder, segundo Jung e Nietzsche antes dele, está na base de inúmeras crueldades humanas: preconceito, violência, adoecimento e até mesmo impactos ambientais.

A vontade de poder pode ser observada em várias formas de comportamento humano, resultando em profundas consequências sociais e individuais. Um exemplo evidente de vontade de poder é o racismo, onde um grupo étnico se considera superior e busca dominar ou marginalizar outros grupos. Este comportamento tem raízes históricas profundas, como o apartheid na África do Sul, onde a segregação racial foi institucionalizada, causando sofrimento e desigualdade por décadas.

O classismo, por sua vez, envolve discriminação baseada na classe social. Um exemplo clássico é o sistema de castas na Índia, que durante séculos ditou a posição social e os direitos das pessoas. Outro exemplo é a divisão socioeconômica nos Estados Unidos, que resulta em disparidades significativas em educação, saúde e oportunidades de emprego.

O cinismo e a hipocrisia são formas de vontade de poder que corroem a confiança social. Políticos que prometem uma coisa e fazem outra exemplificam isso. Um exemplo recente é a crise política no Brasil envolvendo a Lava Jato, onde vários políticos foram descobertos envolvidos em corrupção apesar de suas promessas de combate à mesma.

A violência doméstica é um exemplo de agressão injustificada que reflete a vontade de poder (onde uma vontade particular que se mostrar imperiosa). Casos como o de Maria da Penha, que levou à criação da Lei Maria da Penha no Brasil, mostram como a agressão física e psicológica pode destruir vidas e perpetuar ciclos de sofrimento.

Traições conjugais muitas vezes envolvem uma dinâmica de poder, onde uma parte usa a infidelidade como meio de exercer controle ou satisfazer desejos egoístas, desconsiderando os sentimentos e a dignidade do parceiro.

A exploração do trabalho infantil é um exemplo doloroso de como a vontade de poder usa outros como meios para alcançar fins econômicos. Empresas multinacionais têm sido frequentemente criticadas por usar crianças em condições deploráveis para maximizar lucros.

A cultura do descarte reflete a desumanização e a objetificação, onde pessoas são tratadas como descartáveis. Isso é evidente em várias indústrias, como a moda rápida, que explora trabalhadores em condições sub-humanas e descarta-os quando não são mais úteis.

O estupro é uma das formas mais brutais de vontade de poder, onde a vítima é completamente objetificada e desumanizada. Casos como os dos ataques em Delhi, na Índia, têm destacado a urgência de abordar essa questão e de proteger os direitos das mulheres.

A vontade de poder também tem efeitos devastadores no meio ambiente. A exploração desenfreada dos recursos naturais, motivada pela ganância e pela busca incessante de lucro, tem levado à degradação ambiental, perda de biodiversidade e mudanças climáticas. Exemplos incluem o desmatamento da Amazônia e os derramamentos de petróleo, que têm consequências globais devastadoras.

Nesse contexto, o amor, como oposição à vontade de poder, é fundamental para criar uma sociedade mais justa e compassiva. Enquanto a vontade de poder leva à dominação, exploração e destruição, o amor promove igualdade, respeito e harmonia. Compreender essa dinâmica é crucial para enfrentar os desafios sociais e ambientais que enfrentamos hoje. O trabalho de Carl Jung e outros pensadores nos oferece uma base teórica para essa compreensão, mas é a ação prática que trará mudanças reais.

[2] Penia (Πενία) era a personificação da pobreza, necessidade, dificuldade e falta de meios na mitologia grega. Ela era frequentemente odiada e marginalizada por todos os homens, simbolizando a condição humana de carência e privação. Penia era companheira de Ptoqueia, a mendicidade, e Amecania, o desamparo, reforçando sua associação com os aspectos mais negativos e penosos da existência humana. Além disso, ela podia ser associada a Ananque, a necessidade, como uma deusa primordial que governa a inevitabilidade e a compulsão.

A presença de Penia na mitologia grega é mencionada em várias obras antigas. Em "O Banquete" de Platão, ela é citada na narrativa sobre o nascimento de Eros (o amor), onde Penia, em um ato de desesperada necessidade, se deita ao lado de Poros (a abundância) durante uma celebração dos deuses e concebe Eros. Essa união metafórica representa a ideia de que o amor nasce da carência e da busca incessante por aquilo que falta, combinando elementos de necessidade e abundância.

Na literatura mitológica, Penia representa uma realidade inescapável da vida humana. A sua personificação é uma forma de explicar a condição de pobreza e necessidade que afeta a humanidade. Este conceito é profundamente explorado em obras filosóficas e literárias, onde Penia é vista não apenas como uma condição material, mas também como um estado existencial de falta e desejo.

Os mitos gregos frequentemente associam Penia a outras divindades menores que representam aspectos específicos da carência e da adversidade. Ptoqueia, a mendicidade, personifica a dependência da caridade alheia, enquanto Amecania, o desamparo, simboliza a incapacidade de se defender ou prover para si mesmo. Essas figuras reforçam a visão de Penia como uma deusa que abarca todas as formas de necessidade e privação.

A associação de Penia com Ananque, a deusa da necessidade inevitável, sugere uma ligação profunda entre a pobreza e as forças inexoráveis do destino. Ananque, frequentemente representada como uma deusa primordial que impõe a ordem e a necessidade sobre os deuses e os homens, destaca a inevitabilidade das condições de carência e restrição que Penia personifica.

Os textos mitológicos também exploram a percepção social da pobreza. Penia era desprezada e evitada, refletindo a aversão humana à miséria e ao desamparo. Em muitas sociedades antigas, os pobres eram frequentemente marginalizados e vistos como inferiores, uma atitude que é refletida na personificação de Penia como uma figura solitária e indesejada.

No entanto, a presença de Penia na mitologia grega também sugere uma função pedagógica. Ao personificar a pobreza e a necessidade, os gregos antigos reconheciam essas condições como parte integrante da experiência humana. As histórias envolvendo Penia serviam para lembrar as pessoas da fragilidade da condição humana e da importância da generosidade e da solidariedade.

Além de seu papel na mitologia grega, a figura de Penia ressoa em outras tradições culturais e literárias. A ideia de pobreza como uma força motivadora e transformadora aparece em várias narrativas religiosas e filosóficas ao longo da história. Por exemplo, no Cristianismo, a pobreza material muitas vezes é exaltada como uma virtude espiritual, e a necessidade é vista como uma condição que pode levar à maior proximidade com Deus.

Em conclusão, Penia, a personificação da pobreza, é uma figura complexa que encapsula a condição de necessidade e carência humana. Sua presença na mitologia grega e em outras tradições culturais destaca a inevitabilidade da pobreza e a maneira como ela molda a experiência humana. Ao explorar as histórias e as associações de Penia, podemos obter uma compreensão mais profunda das dinâmicas de poder e necessidade que permeiam a vida humana e a forma como essas forças são representadas e compreendidas nas narrativas mitológicas.

[3] Não se quer dizer que a pobreza sócioeconômica seja a causa do negativo assim descrito, pois se fala de pobreza espiritual.  

  

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