Máscaras dos Homens e Mitos Antigos: Desvendando o Diabo na Psique Humana

 




A igreja do diabo

 

            Apesar do pensamento cristão estar em baixa, o diabo está sempre aparecendo em séries e filmes. No entanto, o diabo é uma figura milenar. Sua origem remete aos tempos bíblicos. Não, contudo, sua atual caracterização, isto é, como criatura vermelha e com chifres. A compreensão dos chifres é facílimo de compreender ― é herança do pensamento grego, isto é, de Pan, ou do deus da floresta, que é meio humano, meio bode. A questão da cor é ainda em aberto, contudo é até compreensível por ser símile do fogo ― ou mesmo, de alguns tipos de chamas, porque nem toda chama é avermelhada. Nas primeiras pinturas o diabo era representado de outro modo. Por exemplo, como serpente. É assim que aparece na primeira gravura que se conhece. Gravura de Trier Library, Alemanha. No entanto, à medida que os estados-nações, que a indústria, que a classe burguesa, que, enfim, a humanidade se desenvolve tecnicamente, até os nossos dias, as representações sociais do diabo se alteram até mesmo a serem pensados em vista de uma criatura cômica ― demasiado humana.

            Em John Milton (1608-1674), britânico autor de Paraíso Perdido (1667), o diabo aparece de modo bastante peculiar. Após o mesmo, assim como de Goethe, Satã terá uma nova representação. A partir do Genesis, a obra trata, como indica o nome, da perda do paraíso e, mesmo, da rebelião do Diabo. Diferente de outras obras, ou, mesmo, do costume até então, Satanás aparece dotado de subjetividade. Ele é pensativo, calculador e até mesmo melancólico. Temos nessa epopeia o conflito entre Lúcifer e Deus, aliás, o primeiro é o protagonista da obra e Milton demonstra toda a desobediência e rebelião de Lúcifer contra Deus.

Após a expulsão do céu, Milton demonstra as penas que Satã e seus seguidores tiveram que enfrentar no inferno, o qual Lúcifer esteve acompanhado de um terço dos anjos que foram expulsos do céu. Tramando a sua vingança e ao mesmo tempo impedidos de efetuar um ataque direto contra o céu devido ao grande poder de Deus e suas hostes celestiais, Lúcifer e seus anjos caídos não encontram outra saída a não ser atacar direto a criação mais amada por Deus, o ser humano. Esse foi criado à sua imagem e semelhança e para colocar o seu plano em ação, Lúcifer toma a forma de uma serpente e seduz Eva para que em companhia do primeiro homem, Adão, comesse do fruto proibido.

Lúcifer tem êxito em seu plano e Eva come o fruto da Árvore do conhecimento, após isso Adão e Eva perdem toda a inocência e obediência que demonstravam perante Deus. Desse momento em diante eles conhecem a culpa e o pecado, caem em desgraça perante os olhos de Deus que envia o arcanjo Miguel ao Éden para informar que Adão e Eva estão expulsos do jardim do Éden e devem deixar o lugar e partir para o mundo. A partir desse momento o ser humano conhece o livre-arbítrio e fica ainda mais vulnerável e suscetível aos assédios provenientes do demônio. Conhecedor dos atos de Lúcifer, Deus o transforma e a todos os seus em serpentes, condenando-os a viver no inferno por um período de aproximadamente mil anos, período esse marcado pela fome, sede e calor intenso.

No século XVIII tivemos Goethe com o seu Fausto. Na obra, diferente da de John Milton, não aparece nada do âmbito sagrado, como o diabo aparece como portador de algum tipo de Luz. De Fausto em diante, o diabo e o inferno não mais aparecem como algo visto em Dante e Milton ― há, assim, uma gradual dessacralização do símbolo. Apesar de o Diabo já não ser mais objeto de crença, ele sobrevive no teatro e na literatura ― com uma pálida expressividade religiosa ― até o século XIX.

            Machado de Assis (1839-1908) tem um conto interessante, chamado A Igreja do Diabo. Contém quatro partes. Nos interessa sobretudo a terceira e a quarta parte, porque ele põe em cena a questão da moral e da moralidade expressa no conto e, mesmo, certa ambivalência humana a respeito do assunto. O segundo capítulo, “entre Deus e o Diabo”, é marcado pelo diálogo entre os dois, onde o Diabo informa a Deus que não irá demorar para que o céu se assemelhe a uma casa vazia, por causa do preço a entrar, que é considerado alto, já que ele irá edificar uma hospedaria mais barata, ou seja, irá fundar uma igreja. O terceiro capítulo, “A boa nova aos homens”, começa com o Diabo tentando retificar a imagem que os homens tinham dele, contestando as histórias que as“velhas beatas” contavam ao seu respeito. Declarava ser o “Diabo verdadeiro e único”, o próprio “gênio da natureza” e o “vosso verdadeiro pai”, prometia dar tudo aos seus discípulos. Quando consegue congregar as multidões aos seus pés, ele começa a definir a doutrina de sua Igreja, que tem como principal base: transgredir todas as leis, especialmente as leis divinas, onde praticar o'bem  era  visto   como  algo   condenável,   o   amor   ao   próximo   era  visto como obstáculo e as suas virtudes aceitas são a soberba, luxúria, preguiça, avareza,ira, gula e inveja. O quarto capítulo, “Franjas e franjas”, é onde a crítica à contradição humana está mais visível. É nesse capítulo que o Diabo começa a perceber que mesmo tendo   tido   sucesso   na   propagação   e   fundação   de   sua   instituição,   às escondidas, seus fiéis praticavam as antigas virtudes. Por exemplo,  alguns aviões davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas. Essa descoberta desorientou   completamente   o   Diabo.   Visando   conhecer   a   causa   de   tal acontecimento, voou ao céu em busca de respostas. Deus, retratado como um ser de sabedoria e paciência, explica ao Diabo a “eterna contradição humana” (palavras de Machado de Assis).

A reflexão da contradição humana indica ― assim como sugere o conto ― que os males, assim como a adoção ou não das virtudes, são antes de tudo decorrentes da natureza humana, isto é, o conjunto de traços diferentes — incluindo maneiras de pensar, sentir ou agir ― que os seres humanos tendem a ter, independente da influência da cultura. Não tanto, assim, como produto de entidades metafísicas. Poderíamos até mesmo dizer que o problema humano está não no bem e no mal, não, assim, na ordem da moral ― que no conto são fenômeno secundários ― porque o bem e mal é a reverberação da vontade humana que parece está inclina à subversão da ordem vigente decorrente de mal-estar, tédio ou vontade pura e simples de subverter. A essência da contradição humana é dotada de qual caráter?! Antes de tudo, primeiro, da contradição, que é um problema para além da Lógica. Ela contém até um traço de origem mítico-teológica, por exemplo, em virtude de que a lei de Deus, que é a lei da harmonia, é subvertida apenas por ser imposição transcental. Assim, a contradição contém algo,  nessa perspectiva, de violação da harmonia ou, ainda, o que é sua símile, dos fins ético-formais da Lei. ― Talvez nos caiba aqui falar no problema da lei para o humano em vista de como a contradição instalada está em consonância no horizonte da malícia humana. Assim, à medida que história do homem se revela enquanto tal, através do avanço das ciências e, mesmo, da história das religiões e dos complexos mitológicos, isto é, da luta dos anjos e demônios, enfim, se estas entram em decadência, aparecem como projeções de nossa psique no mundo. Conforme o parecer de Carl Gustav Jung (1875-1961), psicólogo suiço, por exemplo, é possível pensar que o que outrora era atribuído ao anjos e demônios são em realidade produto da ardilosidade humana. De tal modo que a história, até mesmo como bem sinalizou Dostoievski (1821-1881), escritor russo de envergadura universal, ao comparar o diabo ao homem, seja a história da encarnação terrana do mal e, assim, mostre de modo derradeiro que atrás das máscaras dos homens há o diabo ou, mesmo, que atrás dos antigos mitos a respeito dos seres infernais e, ademais, celestes, nada havia senão as máscaras dos homens.

 

Thiago Carvalho
Texto de 2023

Comentários

Postagens mais visitadas