Da Vontade de Poder à Cultura da Violência: Análise Crítica da Realidade Contemporânea

 




Ao longo dos séculos, a humanidade tem enfrentado de maneira cínica o dilema da origem do mal. Tradicionalmente, essa questão foi atribuída à figura do Diabo, como uma entidade externa responsável por incitar a maldade no mundo. Sob essa perspectiva, o mal era sempre visto como uma manifestação de uma vontade alheia, dissociada da atividade humana. Até mesmo as paixões e pensamentos obscuros eram justificados como influências externas. Essa visão proporcionava uma espécie de conforto, afastando a responsabilidade individual pela negatividade.

Contudo, nos tempos atuais, as explicações para o mal têm adquirido uma nova roupagem, distanciando-se das interpretações teológicas. Uma dessas explicações reside na compreensão do mal como um produto de uma complexa lógica sistêmica. Nesse contexto, diversos elementos entram em jogo, desde influências filogenéticas até fatores históricos e tecnológicos.

Por exemplo, é possível observar como padrões de comportamento e predisposições genéticas moldam a forma como os indivíduos interagem com o mundo, influenciando suas escolhas e ações. Além disso, o contexto histórico, marcado por guerras, opressão e desigualdade, contribui para a perpetuação de sistemas que alimentam o mal.

A tecnologia também desempenha um papel significativo, criando novas formas de expressão do mal e facilitando sua disseminação. Desde a propagação rápida de desinformação até o desenvolvimento de armas de destruição em massa, a tecnologia amplifica as consequências de ações malévolas.

Assim, ao invés de atribuir o mal a uma entidade sobrenatural, a compreensão contemporânea sugere que ele é fruto de uma interação complexa entre diversos fatores, refletindo não apenas a natureza humana, mas também o ambiente em que vivemos e as estruturas sociais que moldam nossas vidas. 

Quem sintetizou bem o problema foi Leonardo Boff no trecho a seguir. 


"A cultura dominante, hoje mundializada, se estrutura ao redor da vontade de poder que se traduz por vontade de dominação da natureza, do outro, dos povos e dos mercados. Os meios de comunicação levam ao paroxismo a magnificação de todo tipo de violência. Nessa cultura, o militar, o banqueiro e o especulador valem mais que o poeta, o filósofo e o santo. Nos processos de socialização formal e informal, ela não cria mediações para uma cultura da paz. Sem detalhar a questão, diríamos que por detrás da violência funcionam poderosas estruturas. A primeira delas é o caos sempre presente no processo cosmogênico. Viemos de uma imensa explosão, o big bang. E a evolução comporta violência em todas as suas fases. Em segundo lugar, somos herdeiros da cultura patriarcal que instaurou a dominação do homem sobre a mulher e criou as instituições do patriarcado assentadas sobre mecanismos de violência como o Estado, as classes, o projeto da tecnociência, os processos de produção como objetivação da natureza e sua sistemática depredação. Em terceiro lugar, essa cultura patriarcal gestou a guerra como forma de resolução dos conflitos. Sobre essa vasta base se formou a cultura do capital, hoje globalizada; sua lógica é a competição, e não a cooperação; por isso, gera guerras econômicas e políticas e, com isso, desigualdades, injustiças e violências. Todas essas forças se articulam estruturalmente para consolidar a cultura da violência que nos desumaniza a todos. A essa cultura da violência há que se opor a cultura da paz. Hoje ela é imperativa. É imperativa, porque as forças de destruição estão ameaçando, por todas as partes, o pacto social mínimo sem o qual regredimos a níveis de barbárie. Onde buscar as inspirações para a cultura da paz? A singularidade do 1% de carga genética que nos separa dos primatas superiores reside no fato de que nós, à distinção deles, somos seres sociais e cooperativos. Ao lado de estruturas de agressividade, temos capacidades de afetividade, compaixão, solidariedade e amorização. O ser humano é o único ser que pode intervir nos processos da natureza e copilotar a marcha da evolução. Ele foi criado criador. Dispõe de recursos de reengenharia da violência mediante processos civilizatórios de contenção e uso de racionalidade. Há muito que filósofos veem no cuidado a essência do ser humano. Tudo precisa de cuidado para continuar a existir. Onde vige cuidado de uns para com os outros desaparece o medo, origem secreta de toda violência, como analisou Freud".

Leonardo Boff em sua obra Cultura da paz.


Aqui, o que me interessa é entender se tanto eu quanto você somos leitores de Leonardo Boff. A questão crucial reside em apropriar-se do seu texto, pois ele representa uma síntese significativa de algo essencial. Em certo sentido, isso é um reflexo, uma imagem de nossa era e até mesmo de muitas outras épocas. Dentro desse contexto, a citação acima nos oferece insights sobre os motivos por trás de certos comportamentos individuais expressos com propriedade por Leo Fraiman.

Se nosso comportamento é influenciado por uma espécie de barbarismo inato, pela busca de poder, pela obstrução da verdade e coisas similares, isso consequentemente acaba por prejudicar as pessoas, especialmente no que diz respeito à saúde mental, então podemos compreender, por exemplo, o que Leo Fraiman traz à tona não só a respeito do mal-estar atual, mas também, em virtude da conexão com o texto de Boff, a tradução da cultura da violência na sua manifestação cotidiana. 


"Você sabe o que está acontecendo no mundo? Deixe-me te dizer: o mundo ocidental está se tornando ridículo, vazio, superficial e violento. Porque as pessoas não leem, não relaxam, não praticam atividades físicas e não têm um contato com a espiritualidade. Elas estão presas em carreiras infelizes, em relacionamentos falsos, muitas vezes motivados pelo dinheiro, pelo medo da solidão. E então, o que acontece? Um consumo desenfreado de açúcar, farinha branca, drogas, álcool e violência."

Leo Fraiman.


Para Freiman, a sociedade ocidental é consistentemente marcada por uma cultura do ridículo, estupidez e burrice. No entanto, apesar de ser altamente evidente, esse não é um tema discutido no cotidiano. Em vez disso, as conversas diárias giram em torno de assuntos como futebol, carros, mulheres, dinheiro, imóveis, viagens e entretenimento superficial, como novelas e reality shows, que carecem de valor intrínseco. Esses são apenas distrações, valores que servem apenas para desviar a atenção do essencial.

Nesse contexto, minha pergunta não é apenas como chegamos a essa situação, mas por que isso não é discutido de forma alguma. Por que o que está errado é reconhecido, mas nunca debatido ou objeto de preocupação, além de uma preocupação subjetiva individual? Seria uma questão de falta de racionalidade, inteligência ou oportunidade para reflexão? Será que, se o assunto fosse trazido à tona, seria acolhido ou simplesmente ignorado pelas pessoas? E por que elas optaram por ignorar esse tópico? Ele não é importante?

Essas perguntas, e outras similares, nos permitem compreender o que eu defino como cinismo. Num sentido simples, o cinismo consiste na obstrução voluntária do horizonte de visão em relação aos fatos e à verdade. Nesse contexto, ele é orientado, em termos axiológicos, por uma moral de utilidade e conveniência. Portanto, trata-se de condicionar o olhar para buscar apenas o que é útil nas pessoas e nas coisas, ignorando o que é bom ou verdadeiro. Essa é fundamentalmente uma atitude acrítica. 

À medida que o mundo é sistematicamente marcado pela cultura da violência, pela vontade de poder, por utilitarismo cego, pela conveniência, este mundo é, numa de suas camadas, expressão de uma vontade de inverdade, que é cooriginária ao cinismo e a vontade de poder. 

Em síntese, ao longo dos séculos, a humanidade confrontou de forma cínica o enigma da origem do mal, atribuindo-o muitas vezes à figura do Diabo, como uma entidade externa. No entanto, as explicações contemporâneas transcendem interpretações teológicas, destacando o mal como resultado de uma complexa lógica sistêmica, influenciada por diversos fatores, como predisposições genéticas, contextos históricos e avanços tecnológicos. Essas mudanças de perspectiva revelam uma compreensão mais profunda das raízes do mal na sociedade. O texto de Leonardo Boff oferece uma visão abrangente das forças que moldam a cultura contemporânea, enfatizando a cultura da violência, a busca desenfreada pelo poder e a falta de cuidado para com os outros e o meio ambiente. A citação de Leo Fraiman complementa essa análise ao destacar a superficialidade e o vazio que permeiam a sociedade ocidental, resultado da falta de reflexão e engajamento com questões essenciais. Nesse contexto, o conceito de cinismo emerge como uma obstrução (in)voluntária à verdade e ao bem, guiada pela moral da utilidade e conveniência. A cultura da violência e a vontade de poder são expressões desse cinismo, que se manifesta na falta de preocupação e debate sobre questões fundamentais. Enfrentar essas questões requer uma mudança de mentalidade, promovendo uma cultura da paz baseada na compaixão, solidariedade e cuidado mútuo.

Thiago Carvalho,

08 de março de 2024


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